O gesto de se acordar, pela manhã, junto à amada, convola-se, nas
palavras do poeta, de um evento ordinário, cotidiano, trivial, a um invulgar daguerreótipo
de fatos que parecem resultantes do ato de se pingar um “colírio alucinógeno” –
como o que lança mão o colunista José Simão, da F.S.P., o autodenominado “Esculhambador-Geral
da República”! (rs)
Mas nisto consiste a arte da poética: apor sobre os olhos do(a)
leitor(a) esse filtro que a tudo transforma, varrendo o pó que a passagem do
tempo agrega sobre a interpretação que fazemos das coisas, acontecimentos,
circunstâncias e pessoas, de modo a acrescer, como diria Camões, “novos mundos
ao mundo”.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
O amanhecer das criaturas
O dia forma-se
de quase nada:
um seio nu
por entre pálpebras,
o sol que raia
e a luz acesa
no arranha-céu
que a aurora lava.
A mão incerta
deixa na rósea
carne dormida
o gesto equívoco.
Tudo é lilá
na luminosa
e vã partilha.
No dia imenso
nascem tesouros:
curvos, redondos.
O pão à porta,
depois o leite,
e o erguer dos
corpos.
Amanhecer dos Vulcões
(Mario Carreño:
pintor cubano)
Referência:
IVO, Lêdo. O amanhecer das criaturas.
In: __________. Os melhores poemas de
Lêdo Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global,
1990. p. 96. (Série “Os Melhores Poemas”, n. 2)
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