O poeta assume o discurso da natureza,
para desvendar aquele que seria o seu maior e único livro, partindo de um
elaborado recital a abranger o microcosmo do individual, até atingir o
macrocosmo terreno, fluido como as águas dos inúmeros rios que menciona.
Imbricado na diatribe retórica de Khlébnikov,
endereçado a toda humanidade, percebe-se a reelaboração de um conceito que já
na Renascença se difunde: os livros sagrados do mundo e suas doutrinas
religiosas veiculam o inefável entendimento que temos sobre o tempo e o seu
domínio sobre a natureza, e o propósito maior é sintetizá-los em um único livro
a dar unidade e abrangência à criação.
J.A.R. – H.C.
Vielimir Khlébnikov
(1885-1922)
Единая книга
Я видел, что черные Веды,
Коран и Евангелие,
И в шелковых досках
Книги монголов
Из праха степей,
Из кизяка благовонного,
Как это делают
Калмычки зарей,
Сложили костер
И сами легли на него –
Белые вдовы в облако дыма скрывались,
Чтобы ускорить приход
Книги единой,
Чьи страницы – большие моря,
Что трепещут крылами бабочки синей,
А шелковинка-закладка,
Где остановился взором читатель, –
Реки великие синим потоком:
Волга, где Разина ночью поют,
Желтый Нил, где молятся солнцу,
Янцекиянг, где жижа густая людей,
И ты, Миссисипи, где янки
Носят штанами звездное небо,
В звездное небо окутали ноги,
И Ганг, где темные люди – деревья ума,
И Дунай, где в белом белые люди,
В белых рубахах стоят над водой,
И Замбези, где люди черней сапога,
И бурная Обь, где бога секут
И ставят в угол глазами
Во время еды чего-нибудь жирного,
И Темза, где серая скука.
Род человечества – книги читатель,
А на обложке – надпись творца,
Имя мое – письмена голубые.
Да ты небрежно читаешь.
Больше внимания!
Слишком рассеян и смотришь лентяем,
Точно уроки закона божия.
Эти горные цепи и большие моря,
Эту единую книгу
Скоро ты, скоро прочтешь!
В этих страницах прыгает кит
И орел, огибая страницу угла,
Садится на волны морские, груди морей,
Чтоб отдохнуть на постели орлана.
O Tâmisa perto das
Pontes Walton
(William Turner:
pintor inglês)
O Único Livro
Vi que os negros
Vedas,
o Evangelho e o
Alcorão,
mais os livros dos
mongóis
em suas tábuas de
seda
– como as mulheres
calmucas todas as manhãs –
ergueram juntos uma
pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume
seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas
veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores
que o mar
tremem como asas de
borboletas safira,
e há um marcador de
seda
no ponto onde o
leitor parou os olhos.
Os grandes rios com
sua torrente azul:
– o Volga, onde à
noite celebram Rázin;
– o Nilo amarelo,
onde imprecam ao Sol;
– o Yang-tze-kiang,
onde há um denso lodo humano;
– e tu, Mississípi,
onde os ianques
trajam calças de céu
estrelado,
enrolando as pernas
nas estrelas;
– e o Ganges, onde a
gente escura são árvores de ciência;
– e o Danúbio, onde
em branco homens brancos
de camisa branca
pairam sobre a água;
– e o Zambeze, onde a
gente é mais negra que uma bota;
– e o fogoso Obi,
onde espancam o deus
e o voltam de olhos
para a parede
quando comem iguarias
gordurosas;
– e o Tâmisa, no seu
tédio cinza.
O gênero humano é o
leitor do livro.
Na capa, o timbre do
artífice –
meu nome, em
caracteres azuis.
Porém tu lês
levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo,
nada levas a sério.
Logo estarás lendo
com fluência
– lições de uma lei
divina –
estas cadeias de
montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta
a baleia
quando a águia
dobrando a página no canto
desce sobre as ondas,
mamas do mar,
e repousa no leito do
falcão marinho.
(1920)
Referências:
Em Russo
Em Português
KHLÉBNIKOV, Vielimir. O único livro.
Tradução de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de;
SCHNAIDERMAN, Boris (Eds.). Poesia moderna russa: nova antologia. 3. ed.
Traduções de Augusto e Haroldo de Campos com a revisão ou colaboração de Boris
Schnaiderman. São Paulo, SP: Brasiliense, 1985. p. 97-98.
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