São João da Cruz, religioso espanhol, supunha que há etapas de desolação
ou “noites escuras” espirituais – formuladas em combinações dos duplos
ativo/passivo e espiritual/sensual –, através das quais devemos peregrinar, a
fim de chegarmos a uma união completamente madura e perfeita com Deus.
Tanto quanto a veicular orações, em sua mescla de filosofia, psicologia
e teologia mística, as palavras do religioso detêm brilho e poesia, encantando
o leitor, esteja este propenso ou não a empreender uma viagem pelo “dark side
of the soul”.
J.A.R. – H.C.
Apreciação do Poema
por Thomas Merton
[Segundo São João da
Cruz], “o ‘caminho espiritual’ é falsamente concebido se for pensado como uma
negação da carne, dos sentidos e da visão, a fim de se chegar a uma experiência
mais elevada. Pelo contrário, ‘a noite escura dos sentidos’ que deixa a casa da
carne em repouso é, no máximo, um começo sério. A verdadeira noite escura é a
do espírito, onde o ‘sujeito’ de todas as formas mais elevadas de visão e de
inteligência é deixado no escuro e no vazio não como um espelho, puro de todas
as impressões, mas como um vazio sem conhecimento e sem qualquer capacidade
natural de conhecer o sobrenatural. É engano pensar que São João da Cruz ensina
a negação do corpo e dos sentidos como um meio de alcançar um conhecimento
místico mais elevado e mais secreto. Ao contrário, ele ensina que a luz de Deus
brilha em toda vacuidade onde não há nenhum sujeito natural para recebê-la.
Para essa vacuidade não há, na realidade, nenhum caminho. ‘Entrar no caminho é
deixar o caminho’, pois o próprio caminho é a vacuidade”. (MERTON, 2006, p.
28-29)
San Juan de La Cruz
(1542-1591)
Noche Escura del Alma
En una noche escura,
con ânsias en amores
inflamada,
iOh dichosa ventura!
Salí sin ser notada,
Estando ya mi casa
sosegada.
A escuras y segura,
Por Ia secreta escala
disfrazada,
iOh dichosa ventura!
A escuras, encelada,
Estando ya mi casa
sosegada.
En Ia noche dichosa,
En secreto que nadie
me veia,
Ni yo miraba cosa,
Sin otra luz ni guia
Sino Ia que en el
corazón ardia.
Aquesta me guiaba
Más cierto que Ia luz
de medio dia
Adonde me esperabsi
Quien yo bien me
sabia,
En parte donde nadie
parecia.
iOh noche, que
guiaste,
Oh noche amable más
que el alborada,
Oh noche, que
juntaste
Amado con amada,
Amada en el Amado
transformada!
En mi pecho florido,
Que entero para él
solo se guardaba,
Allí quedó dormido,
Y yo le regalaba,
Y ei ventalle de
cedros aire daba,
El aire del almena,
Guando ya sus
cabellos esparcía
Con su mano serena,
En mi cuello hería
Y todos mis sentidos
suspendia.
Quedéme y olvidéme,
El rostro recliné
sobre el Amado;
Cesó todo y dejéme,
Dej ando mi cuidado
Entre Ias azucenas
olvidado.
(1578)
São Francisco de Assis em Êxtase
(Caravaggio: pintor
italiano)
Em uma Noite Escura
Em uma noite escura,
Com ânsias em amores
inflamada
– Ó ditosa ventura! –,
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando
sossegada;
No escuro e bem
segura,
Pela secreta escada,
disfarçada
– Ó ditosa ventura! –,
No escuro e bem
velada,
Já minha casa estando
sossegada.
Nessa noite almejada,
Em segredo, que mais
ninguém me via,
Nem eu olhava nada,
Sem outra luz ou guia
Senão a que no
coração ardia.
E tal luz me guiava,
Mais reto do que a
luz do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Ali onde ninguém
aparecia.
Ó noite que guiaste,
Ó noite mais amável
que a alvorada,
Ó noite que juntaste
Amado com Amada,
Amada em seu Amado
transformada!
Em meu peito florido,
Que inteiro para ele
se guardava,
Pousou adormecido,
E eu só o acarinhava,
E de cedros um leque
brisa dava.
A brisa dessa ameia,
Quando eu os seus
cabelos espargia,
Com mão serena e
cheia
Em meu colo batia
E todos meus sentidos
suspendia.
Esqueci-me,
quedei-me,
O rosto reclinei
sobre o Amado;
Tudo parou, deixei-me,
Deixando meu cuidado
Por entre as açucenas
olvidado.
(1578)
Referências:
Em Espanhol
CRUZ, San Juan. Noche escura del alma. In: PEERS, E. Allison. El misticismo español. 2. ed. Buenos
Aires, AR: Espasa-Calpe Argentina, 1947. p. 153-154. (“Colección Austral”; v.
671)
Em Português
CRUZ, San Juan de La. Em uma noite escura. Tradução de
Carlito Azevedo. In: SPITZER, Leo. (Org.). Três poemas sobre o êxtase: John
Donne, San Juan de La Cruz, Richard Wagner. Tradução de Samuel Titan Jr. São
Paulo, SP: Cosac & Naify, 2003, p. 19, 21 e 23.
MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen. Tradução de Margarida Oliva. 1. ed. São
Paulo, SP: Martins Fontes, 2006.
❁
Lindo poema,nos faz refletir sobre o momento presente.
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