Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 12 de novembro de 2016

San Juan de La Cruz - Noite Escura da Alma

São João da Cruz, religioso espanhol, supunha que há etapas de desolação ou “noites escuras” espirituais – formuladas em combinações dos duplos ativo/passivo e espiritual/sensual –, através das quais devemos peregrinar, a fim de chegarmos a uma união completamente madura e perfeita com Deus.

Tanto quanto a veicular orações, em sua mescla de filosofia, psicologia e teologia mística, as palavras do religioso detêm brilho e poesia, encantando o leitor, esteja este propenso ou não a empreender uma viagem pelo “dark side of the soul”.

J.A.R. – H.C.

Apreciação do Poema
por Thomas Merton

[Segundo São João da Cruz], “o ‘caminho espiritual’ é falsamente concebido se for pensado como uma negação da carne, dos sentidos e da visão, a fim de se chegar a uma experiência mais elevada. Pelo contrário, ‘a noite escura dos sentidos’ que deixa a casa da carne em repouso é, no máximo, um começo sério. A verdadeira noite escura é a do espírito, onde o ‘sujeito’ de todas as formas mais elevadas de visão e de inteligência é deixado no escuro e no vazio não como um espelho, puro de todas as impressões, mas como um vazio sem conhecimento e sem qualquer capacidade natural de conhecer o sobrenatural. É engano pensar que São João da Cruz ensina a negação do corpo e dos sentidos como um meio de alcançar um conhecimento místico mais elevado e mais secreto. Ao contrário, ele ensina que a luz de Deus brilha em toda vacuidade onde não há nenhum sujeito natural para recebê-la. Para essa vacuidade não há, na realidade, nenhum caminho. ‘Entrar no caminho é deixar o caminho’, pois o próprio caminho é a vacuidade”. (MERTON, 2006, p. 28-29)

San Juan de La Cruz
(1542-1591)

Noche Escura del Alma

En una noche escura,
con ânsias en amores inflamada,
iOh dichosa ventura!
Salí sin ser notada,
Estando ya mi casa sosegada.

A escuras y segura,
Por Ia secreta escala disfrazada,
iOh dichosa ventura!
A escuras, encelada,
Estando ya mi casa sosegada.

En Ia noche dichosa,
En secreto que nadie me veia,
Ni yo miraba cosa,
Sin otra luz ni guia
Sino Ia que en el corazón ardia.

Aquesta me guiaba
Más cierto que Ia luz de medio dia
Adonde me esperabsi
Quien yo bien me sabia,
En parte donde nadie parecia.

iOh noche, que guiaste,
Oh noche amable más que el alborada,
Oh noche, que juntaste
Amado con amada,
Amada en el Amado transformada!

En mi pecho florido,
Que entero para él solo se guardaba,
Allí quedó dormido,
Y yo le regalaba,
Y ei ventalle de cedros aire daba,

El aire del almena,
Guando ya sus cabellos esparcía
Con su mano serena,
En mi cuello hería
Y todos mis sentidos suspendia.

Quedéme y olvidéme,
El rostro recliné sobre el Amado;
Cesó todo y dejéme,
Dej ando mi cuidado
Entre Ias azucenas olvidado.

(1578)

São Francisco de Assis em Êxtase
(Caravaggio: pintor italiano)

Em uma Noite Escura

Em uma noite escura,
Com ânsias em amores inflamada
– Ó ditosa ventura! –,
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada;

No escuro e bem segura,
Pela secreta escada, disfarçada
– Ó ditosa ventura! –,
No escuro e bem velada,
Já minha casa estando sossegada.

Nessa noite almejada,
Em segredo, que mais ninguém me via,
Nem eu olhava nada,
Sem outra luz ou guia
Senão a que no coração ardia.

E tal luz me guiava,
Mais reto do que a luz do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Ali onde ninguém aparecia.

Ó noite que guiaste,
Ó noite mais amável que a alvorada,
Ó noite que juntaste
Amado com Amada,
Amada em seu Amado transformada!

Em meu peito florido,
Que inteiro para ele se guardava,
Pousou adormecido,
E eu só o acarinhava,
E de cedros um leque brisa dava.

A brisa dessa ameia,
Quando eu os seus cabelos espargia,
Com mão serena e cheia
Em meu colo batia
E todos meus sentidos suspendia.

Esqueci-me, quedei-me,
O rosto reclinei sobre o Amado;
Tudo parou, deixei-me,
Deixando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.

(1578)

Referências:

Em Espanhol

CRUZ, San Juan. Noche escura del alma. In: PEERS, E. Allison. El misticismo español. 2. ed. Buenos Aires, AR: Espasa-Calpe Argentina, 1947. p. 153-154. (“Colección Austral”; v. 671)

Em Português

CRUZ, San Juan de La. Em uma noite escura. Tradução de Carlito Azevedo. In: SPITZER, Leo. (Org.). Três poemas sobre o êxtase: John Donne, San Juan de La Cruz, Richard Wagner. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2003, p. 19, 21 e 23.

MERTON, Thomas. Místicos e mestres zen. Tradução de Margarida Oliva. 1. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006.

Um comentário: