Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Mendes de Carvalho - 1º e 2º Poemas da Cidade

Ao compulsar o volume em referência, pertencente a uma valiosa coletânea com contribuições de inúmeros escritores de norte a sul de Portugal, encontrei os dois poemas abaixo e, por eles, encantei-me, sobretudo pela comicidade leve com que trata a presença de turistas em Lisboa, a influência norte-americana e francesa sobre os gostos locais, o perigo de se contrair vírus despontados de lugares os mais remotos, e até mesmo o acirramento da demanda por serviços, como diria?, libertinos! (rs).

Segundo David Mourão-Ferreira, “o que mais sobressai, na produção de Mendes de Carvalho [1927-1988], é uma ácida atenção ao quotidiano, traduzida em termos de um humor corrosivo que principalmente toma como objecto, mais que os indivíduos, determinadas instituições e determinados grupos sociais, através de uma linguagem em que o deliberado prosaísmo é tão-só aparente e em que o constante recurso a enumerações, anáforas e apóstrofes contribui afinal para lhe conferir, por vias próximas de certa inspiração surrealista, e numa renovadora perspectiva da tradição tolentiniana, iniludíveis marcas de uma real transposição poética” (MOURÃO-FERREIRA, 1981, p. 191).

J.A.R. – H.C.


“Camaleões & Altifalantes”
Capa da Edição

1º Poema da Cidade

Cidade de exactamente sete colinas e meia
muito limpa por fora muito hospitaleira
cidade bilhete-postal colorido para turistas
cidade de gente pacífica muito ordeira
cidade confusamente poliglota no aeroporto
comercialmente muito às ordens de madame
on parle français english spoken
tudo aprendido em sessenta lições.
Os turistas fazem belas fotografias
visitam os Jerónimos e a Torre de Belém
acham tudo magnifique beautiful
vão ao fado e não entendem mesmo nada
mas dizem très sentimental very romantic
os americanos bebem port wine
e compram numa esquina 55 kg de amor.

No fim todos levam muitas recordações.

Vista do Tejo
(David Levy Lima: pintor cabo-verdiano)

2º Poema da Cidade

Há de tudo nesta sossegada e hospitaleira cidade
Contando é evidente com os artigos importados
desde cintas dernier cri da Rue de la Paix
para uso de damas ventrudas da alta sociedade
passando pelos três sorrisos da menina Sagan
e a filosofia de monsieur Jean-Paul Sartre
até ao oriental vírus “A-Sigapura I-57”.
Os peões caminham pela direita como foi estabelecido
muito bem comportados muito fantasmas líricos
conformados com a pacífica vida quotidiana.
Os que não resistem ao clima dão dentadas na alma
o que em nada prejudica o singular sossego da cidade.

Tudo se passa tudo acontece muito liricamente
como convém a um país de sol à beira-mar plantado.
As pessoas morrem de morte puramente natural
exceptuando um ou outro inadaptado.

A cidade continua a ser muito própria para turistas.

Em: “Camaleões e Altifalantes” (1963)

Referência:

CARVALHO, Mendes de. 1º e 2º poemas da cidade. In: MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. Antologia de textos de escritores do século XX. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 194-195.

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