Ao compulsar o volume em referência, pertencente a uma valiosa coletânea
com contribuições de inúmeros escritores de norte a sul de Portugal, encontrei
os dois poemas abaixo e, por eles, encantei-me, sobretudo pela comicidade leve com
que trata a presença de turistas em Lisboa, a influência norte-americana e
francesa sobre os gostos locais, o perigo de se contrair vírus despontados de
lugares os mais remotos, e até mesmo o acirramento da demanda por serviços, como
diria?, libertinos! (rs).
Segundo David Mourão-Ferreira, “o que mais sobressai, na produção de
Mendes de Carvalho [1927-1988], é uma ácida atenção ao quotidiano, traduzida em
termos de um humor corrosivo que principalmente toma como objecto, mais que os
indivíduos, determinadas instituições e determinados grupos sociais, através de
uma linguagem em que o deliberado prosaísmo é tão-só aparente e em que o
constante recurso a enumerações, anáforas e apóstrofes contribui afinal para
lhe conferir, por vias próximas de certa inspiração surrealista, e numa
renovadora perspectiva da tradição tolentiniana, iniludíveis marcas de uma real
transposição poética” (MOURÃO-FERREIRA, 1981, p. 191).
J.A.R. – H.C.
“Camaleões & Altifalantes”
Capa da Edição
1º Poema da Cidade
Cidade de exactamente
sete colinas e meia
muito limpa por fora
muito hospitaleira
cidade bilhete-postal
colorido para turistas
cidade de gente
pacífica muito ordeira
cidade confusamente
poliglota no aeroporto
comercialmente muito
às ordens de madame
on parle français
english spoken
tudo aprendido em
sessenta lições.
Os turistas fazem
belas fotografias
visitam os Jerónimos
e a Torre de Belém
acham tudo magnifique
beautiful
vão ao fado e não
entendem mesmo nada
mas dizem très
sentimental very romantic
os americanos bebem
port wine
e compram numa
esquina 55 kg de amor.
No fim todos levam
muitas recordações.
Vista do Tejo
(David Levy Lima:
pintor cabo-verdiano)
2º Poema da Cidade
Há de tudo nesta
sossegada e hospitaleira cidade
Contando é evidente
com os artigos importados
desde cintas dernier
cri da Rue de la Paix
para uso de damas
ventrudas da alta sociedade
passando pelos três
sorrisos da menina Sagan
e a filosofia de
monsieur Jean-Paul Sartre
até ao oriental vírus
“A-Sigapura I-57”.
Os peões caminham
pela direita como foi estabelecido
muito bem comportados
muito fantasmas líricos
conformados com a
pacífica vida quotidiana.
Os que não resistem
ao clima dão dentadas na alma
o que em nada
prejudica o singular sossego da cidade.
Tudo se passa tudo
acontece muito liricamente
como convém a um país
de sol à beira-mar plantado.
As pessoas morrem de
morte puramente natural
exceptuando um ou
outro inadaptado.
A cidade continua a
ser muito própria para turistas.
Em: “Camaleões e Altifalantes” (1963)
Referência:
CARVALHO, Mendes de. 1º e 2º poemas da
cidade. In: MOURÃO-FERREIRA, David; SEIXO, Maria Alzira (Orgs.). Portugal: a terra e o homem. Antologia
de textos de escritores do século XX. II Volume - 3ª Série. Lisboa, PT:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. p. 194-195.
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