Ferreira Gullar, o renomado escritor e poeta maranhense, fala-nos, no
poema a seguir, da poesia que se autodescreve, que transita pelos seus
clássicos, como Púchkin e Baudelaire. Uma poesia que perpassa toda a história,
os meandros do quotidiano, a marola do marasmo e a borrasca da revolução!
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(n. 1930)
A Poesia
Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a
poesia
vai à esquina comprar
jornal.
Cientistas
esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a
máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma
portaria: é proibido
misturar o poema com
Ipanema.
O poeta depõe no
inquérito:
meu poema é puro,
flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem
futuro.
Não sabe a fel nem
sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito à
traça
pois tem a proteção
do inseticida.
Creia,
o meu poema está
infenso à vida.
Claro, a vida é suja,
a vida é dura.
E sobretudo insegura:
“Suspeito de
atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de
Abreu”.
“A Fábrica de Fiação
Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma
centena de operários”.
“A adúltera Rosa
Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou
descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz’”.
O anel que tu me
deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me
tinhas
era pouco e se acabou
Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e
navalha
uma vertigem de
cabelos e dentes
cheiros que
transpassam o metal
e me impedem de viver
ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda
aberta em flor embaixo
onde eu morria
Branca e verde
branca e verde
branca branca branca
branca
E agora
recostada no divã da
sala
depois de tudo
a poesia ri de mim
Ih, é preciso arrumar
a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o
jantar
É preciso ir buscar o
menino no colégio
lavar a roupa limpar
a vidraça
O amor
(era muito? era
pouco?
era calmo? era
louco?)
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa,
Ingrácia,
A tua grácia!
E pensar que nunca
mais a terei
real e efêmera (na penumbra
da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se
juntar
ao esqueleto das
noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim
gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre
com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E
só).
Poesia – deter a vida
com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em
nossa voz.
Poesia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada
sílaba,
deflagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão
E súbito da calçada
sobe
e explode
junto ao meu rosto o
pássaro?
O pássaro?
Como chamá-lo? Pombo?
Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há
pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules
bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo?
Não:
poesia
paixão
revolução
Santiago, 12 de julho de 1973.
Recolhido em: “Dentro da Noite Veloz”
(1962/1975)
La Joie de Vivre: 1946
Pablo Picasso
(1881-1973)
Referência:
GULLAR, Ferreira. A poesia. In:
__________. Os melhores poemas.
Seleção de Alfredo Bosi. 2. Ed. São Paulo: Global, 1985. p. 99-102. (Os
Melhores Poemas n. 3)
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