Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 8 de novembro de 2014

António Gedeão – Pedra Filosofal

Ainda que recorram ao mesmo significante – “pedra filosofal” –, antecipamos que há ampla distância entre a temática do primeiro volume da série de “Harry Potter”, da autora britânica J. K. Rowling, e a do poema do escritor lusitano Antônio Gedeão – pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama Carvalho –, ora objeto de nossa postagem.

 

É que a metáfora da “pedra filosofal”, sob a lavra de Gedeão, põe em relevo o potencial que os nossos sonhos detêm para transmutar um material onírico – e não só onírico, porque há também sonhos que idealizamos de olhos bem abertos! – na mais palpável realidade.

 

Tudo transcorre como se Gedeão estivesse hipoteticamente a dialogar com o norte-americano Ezra Pound, e a ratificar o entendimento deste último, no que concerne à ascendência dos sonhos sobre os “homens fortes” que se “transmutam” em “grandes feitos, corações ardentes, pensamentos poderosos”.

 

Vamos lá, leitor: role um pouco a página deste ‘blog’ e releia o poema de Ezra que postamos imediatamente antes deste. Em ambos, muito se fala de sonhos e seus efeitos na vida de seres humanos lúcidos e perspicazes.

 

É que, de um modo ou de outro, há alguma identidade entre o que denominamos por poesia e o objetivo alquímico da pedra filosofal: tudo à nossa volta comporta suficiente encanto e, para “olhos e ouvidos atentos”, goza de latente reserva, capaz de ser metamorfoseada em “elixir para uma longa vida”!

 

J.A.R. – H.C.

 

António Gedeão

(1906-1997)

 

Pedra Filosofal

 

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

 

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

 

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa dos ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é Cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

para-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultrassom, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

 

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre a mãos de uma criança.

 

Em: “Movimento perpétuo” (1956)

 

Interpretação do músico Manuel Freire

para o poema de António Gedeão

 

Referência:

 

GEDEÃO, António. Pedra filosofal. In: COSTA E SILVA, Alberto; BUENO, Alexei (Orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. p. 51-52. 

 

2 comentários:

  1. É estranho que o cantor salta um verso "que fossa através de tudo" - será por causa de uma gestão do ritmo da música (que se quer mais lento ao início) ou simples esquecimento?

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    1. Prezado(a) internauta: trata-se de uma hipótese válida, tanto mais que a omissão do verso parece não ser incidental, como se pode ratificar pelas inúmeras interpretações do mesmo músico, em diversos vídeos no Youtube, afastado a meu ver, por conseguinte, o elemento contingente do "simples esquecimento". JAR/

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