Ainda que recorram ao mesmo significante – “pedra
filosofal” –, antecipamos que há ampla distância entre a temática do primeiro
volume da série de “Harry Potter”, da autora britânica J. K. Rowling, e a do
poema do escritor lusitano Antônio Gedeão – pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama
Carvalho –, ora objeto de nossa postagem.
É que a metáfora da “pedra filosofal”, sob a lavra
de Gedeão, põe em relevo o potencial que os nossos sonhos detêm para transmutar
um material onírico – e não só onírico, porque há também sonhos que idealizamos
de olhos bem abertos! – na mais palpável realidade.
Tudo transcorre como se Gedeão estivesse
hipoteticamente a dialogar com o norte-americano Ezra Pound, e a ratificar o
entendimento deste último, no que concerne à ascendência dos sonhos sobre os
“homens fortes” que se “transmutam” em “grandes feitos, corações ardentes,
pensamentos poderosos”.
Vamos lá, leitor: role um pouco a página deste
‘blog’ e releia o poema de Ezra que postamos imediatamente antes deste. Em
ambos, muito se fala de sonhos e seus efeitos na vida de seres humanos lúcidos
e perspicazes.
É que, de um modo ou de outro, há alguma identidade
entre o que denominamos por poesia e o objetivo alquímico da pedra filosofal:
tudo à nossa volta comporta suficiente encanto e, para “olhos e ouvidos
atentos”, goza de latente reserva, capaz de ser metamorfoseada em “elixir para
uma longa vida”!
J.A.R. – H.C.
António Gedeão
(1906-1997)
Pedra Filosofal
Eles não sabem que o
sonho
é uma constante da
vida
tão concreta e
definida
como outra coisa
qualquer,
como esta pedra
cinzenta
em que me sento e
descanso,
como este ribeiro
manso
em serenos
sobressaltos,
como estes pinheiros
altos
que em verde e oiro
se agitam,
como estas aves que
gritam
em bebedeiras de
azul.
Eles não sabem que o
sonho
é vinho, é espuma, é
fermento,
bichinho álacre e
sedento,
de focinho
pontiagudo,
que fossa através de
tudo
num perpétuo
movimento.
Eles não sabem que o
sonho
é tela, é cor, é
pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva,
vitral,
pináculo de catedral,
contraponto,
sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de
alquimista,
mapa do mundo
distante,
rosa dos ventos,
Infante,
caravela
quinhentista,
que é Cabo da Boa
Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de
espadachim,
bastidor, passo de
dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios,
locomotiva,
barco de proa
festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo,
radar,
ultrassom, televisão,
desembarque em
foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem
sonham,
que o sonho comanda a
vida.
Que sempre que um
homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma
criança.
Em: “Movimento perpétuo” (1956)
Interpretação do músico Manuel Freire
para o poema de António Gedeão
Referência:
GEDEÃO, António. Pedra filosofal. In: COSTA E SILVA, Alberto; BUENO, Alexei (Orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. p. 51-52.
É estranho que o cantor salta um verso "que fossa através de tudo" - será por causa de uma gestão do ritmo da música (que se quer mais lento ao início) ou simples esquecimento?
ResponderExcluirPrezado(a) internauta: trata-se de uma hipótese válida, tanto mais que a omissão do verso parece não ser incidental, como se pode ratificar pelas inúmeras interpretações do mesmo músico, em diversos vídeos no Youtube, afastado a meu ver, por conseguinte, o elemento contingente do "simples esquecimento". JAR/
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