Para começar bem o dia, trago um poema
do escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna: “A Coisa Pública e a Privada”.
O trocadilho que ele emprega entre os termos “público” e “privado” aproveita-se
da polissemia deste último vocábulo para atingir um efeito bastante cômico.
J.A.R. – H.C.
Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)
A Coisa Pública e a Privada
Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.
Uns queriam privar
da coisa pública
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente
parecesse perfumada.
Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.
Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.
Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?
O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?
– Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.
Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.
Referência:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A coisa
pública e a privada. In: __________. Intervalo amoroso & Outros poemas
escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 2009 (Coleção L&PM Pocket n. 153).
p. 19-20.
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