Jorge de Sena, indiscutivelmente um dos maiores poetas portugueses do
Século XX e, quiçá, de todos os tempos – aqui, com os meus botões: julgo que
Camões deve estar me censurando lá do outro lado do rio! (rs) –, doura este
espaço com o soberbo poema em epígrafe.
Ao lê-lo pela primeira vez, logo depois de adquirir o livro a que se faz
referência ao final desta inserção, nele capturei certos elementos que são como
que filigranas que deixamos escapar em nossas experiências diuturnas, detalhes
que somente autores de grande sensibilidade ousam discernir sob esse véu turvo
a que está submetida “A Máquina do Mundo”, diga-se, mecanismo labiríntico cujos
sentidos um outro grande poeta, Drummond, buscou decifrar com desvelo e paixão.
Terá conseguido?!
P.s.: A grafia do texto se encontra tal como na Antologia, ou seja,
atendendo aos padrões da escrita em Portugal.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
A Morte, o Espaço, a Eternidade
De morte natural
nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer
que nós nascemos,
não foi só para a
morte que dos tempos
chega até nós esse
murmúrio cavo,
inconsolado, uivante,
estertorado,
desde que anfíbios
viemos a uma praia
e quadrumanos nos
erguemos. Não.
Não foi para
morrermos que falámos,
que descobrimos a
ternura e o fogo,
e a pintura, a
escrita, a doce música.
Não foi para morrer
que nós sonhámos
ser imortais, ter
alma, reviver,
ou que sonhámos
deuses que por nós
fossem mais imortais
que sonharíamos.
Não foi. Quando
aceitamos como natural,
dentro da ordem das
coisas ou dos anjos,
o inominável fim da
nossa carne; quando
ante ele nos curvamos
como se ele fora
inescapável fome de
infinito; quando
vontade o imaginamos
de outros deuses
que são rostos de um
só; quando que a dor
é um erro humano a
que na dor nos damos
porque de nós se
perde algo nos outros, vamos
traindo esta
ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano,
passo a passo, mais.
A morte é natural na
natureza. Mas
nós somos o que nega
a natureza. Somos
esse negar da
espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao
Sol, à terra, às águas.
Para emergir
nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o
ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre,
nasce e morre, acaba
como uma espécie
extinta de outras eras.
Para emergirmos
livres foi que a morte
nos deu um medo que é
nosso destino.
Tudo se fez para
escapar-lhe, tudo
se imaginou para
iludi-la, tudo
até coragem,
desapego, amor,
tudo para que a morte
fosse natural.
Não é. Como, se o fora,
há tantos milhões de anos
a conhecemos, a
sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando
a não queremos?
Como nunca ninguém a
recebeu
senão cansado de
viver? Como a ninguém
sequer é concebível
para quem lhe seja
um ente amado, um ser
diverso, um corpo
que mais amamos que a
nós próprios? Como
será que os animais,
junto de nós,
a mostram na amargura
de um olhar
que lânguido esmorece
rebelado?
E desde sempre se
morreu. Que prova?
Morrem os astros,
porque acabam. Morre
tudo o que acaba,
diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre
de universo pouco,
do pouco de universo
conquistado.
Não há limites para a
Vida. Não
aquela que de um
salto se formou
lá onde um dia alguns
cristais comeram;
nem bem aquela que,
animal ou planta,
foi sendo pelo mundo
este morrer constante
de vidas que outras
vidas alimentam
para que novas vidas
surjam que
como primárias
células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a
respirada,
suada, segregada,
circulada,
a que é excremento e
sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e
pele que palpita
ligeiramente fria sob
ardentes dedos.
Não há limites para
ela. É uma injustiça
que sempre se
morresse, quando agora
de tanto que matava
se não morre.
É o pouco de universo
a que se agarram,
para morrer, os que
possuem tudo.
O pouco que não basta
e que nos mata,
quando como ele a
Vida não se amplia,
e é como a pel’ do onagro,
que se encolhe,
retráctil e submissa,
conformada.
É uma injustiça a
morte. É cobardia
que alguém a aceite
resignadamente.
O estado natural é
complacência eterna,
é uma traição ao medo
por que somos,
àquilo que nos cabe:
ser o espírito
sempre mais vasto do
Universo infindo.
O Sol, a Via Láctea,
as nebulosas,
teremos e veremos até
que
a Vida seja de
imortais que somos
no instante em que da
morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo
em que o pecado,
a queda, a falta
originária, o mal
é aceitar seja o que
for, rendidos.
E Deus não quer que
nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada.
Ele espera,
como um juiz na meta
da corrida,
torcendo as mãos de
desespero e angústia,
porque nada pode
fazer nada e vê
que os corredores
desistem, se acomodam,
ou vão tombar
exaustos no caminho.
De nós se acresce ele
mesmo que será
o espírito que
formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele
que repousamos,
mas ele se encontrará
nos nossos braços
quando chegarmos mais
além do que ele.
Não nos aguarda – a
mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a
quem te deu o ser –
não nos aguarda, não.
Por cada morte
a que nos entregamos
el’ se vê roubado,
roído pelos ratos do
demónio,
o homem natural que
aceita a morte,
a natureza que de
morte é feita.
Quando a hora chegar
em que já tudo
na terra foi humano – carne e sangue –,
não haverá quem sopre
nas trombetas
clamando o globo a um
corpo só, informe,
um só desejo, um só
amor, um sexo.
Fechados sobre a
terra, ela nos sendo
e sendo ela nós
todos, a ressurreição
é morte desse Deus
que nos espera
para espírito seu e
carne do Universo.
Para emergir
nascemos. O pavor nos traça,
este destino
claramente visto:
podem os mundos
acabar, que a Vida,
voando nos espaços,
outros mundos,
há-de encontrar em
que se continue.
E, quando o infinito
não mais fosse,
e o encontro houvesse
de um limite dele,
a Vida com seus
punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço
caiba a Eternidade.
Em: “As Metamorfoses”.
Referência:
SENA, Jorge de. A morte, o espaço, a
eternidade. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa
contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 89-93.
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