Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 15 de novembro de 2014

Pablo Neruda - Uma Poesia sem Pureza

Numa digressão que dignifica a arte literária, plenamente meritória de grandes autores – como ele próprio se mostrou ao longo de toda a sua carreira – Neruda acerca-se do fenômeno poético com as divisas da própria poesia, apartando-a de concepções que lhe são forasteiras, extrínsecas, incongruentes.

Como o panegírico de Octavio Paz sobre a poesia, o de Neruda satura o firmamento das letras com imagens capturadas ao próprio quotidiano, plasmadas em seu estado mental de homem intensamente engajado nas coisas do mundo. Íntegra e profundamente!

J.A.R. – H.C. 
Pablo Neruda
(Retrato de Alejandro Cabeza)

Sobre una poesía sin pureza (*)

Es muy conveniente, en ciertas horas del día o de la noche, observar profundamente los objetos en descanso: las ruedas que han recorrido largas, polvorientas distancias, soportando grandes cargas vegetales o minerales, los sacos de las carbonerías, los barriles, las cestas, los mangos y asas de los instrumentos del carpintero. De ello se desprende el contacto del hombre y de la tierra como una lección para el torturado poeta lírico. Las superficies usadas, el gasto que las manos han infligido a Ias cosas, la atmósfera a menudo trágica y siempre patética de estos objetos, infunde una especie de atracción no despreciable hacia la realidad del mundo.

La confusa impureza de los seres humanos se percibe en ellos, la agrupación, uso y desuso de los materiales, las huellas del pie y los dedos, la constancia de una atmósfera inundando las cosas desde lo interno y lo externo.

Así sea la poesía que buscamos, gastada como por un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y el humo, oliente a orina y a azucena, salpicada por las diversas profesiones que se ejercen dentro y fuera de la ley.

Una poesía impura como un traje, como un cuerpo, con manchas de nutrición, y actitudes vergonzosas, con arrugas, observaciones, sueños, vigilia, profecías, declaraciones de amor y de odio, bestias, sacudidas, idilios, creencias políticas, negaciones, dudas, afirmaciones, impuestos.

La sagrada ley del madrigal y los decretos del tacto, olfato, gusto, vista, oído, el deseo de justicia, el deseo sexual, el ruido del océano, sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar deliberadamente nada, la entrada en la profundidad de las cosas en un acto de arrebatado amor, y el producto poesía manchado de palomas digitales, con huellas de dientes y hielo, roído tal vez levemente por el sudor y el uso. Hasta alcanzar esa dulce superficie del instrumento tocado sin descanso, esa suavidad durísima de la madera manejada, del orgulloso hierro. La flor, el trigo, el agua tienen también esa consistencia especial, ese recuerdo de un magnífico tacto.

Y no olvidemos nunca la melancolía, el gastado sentimentalismo, perfectos frutos impuros de maravillosa calidad olvidada, dejados atrás por el frenético libresco: la luz de la luna, el cisne en el anochecer, “corazón mío” son sin duda lo poético elemental e imprescindible. Quien huye del mal gusto cae en el hielo.

(*) Publicado originalmente na revista “Caballo Verde para la Poesía”, nº 1, Madrid, outubro de 1935.

Os Poetas Contemporâneos
(Antonio María Esquivel: 1846)

Sobre uma poesia sem pureza

É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que percorreram longas, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato do homem e da terra como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o gasto que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera frequentemente trágica e sempre patética destes objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à realidade do mundo.

A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do interno e do externo.

Assim seja a poesia que procuramos, gasta como por um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.

Uma poesia impura como um traje, como um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas, observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas, arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.

A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladar, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual, o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da madeira manejada pelo orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também essa consistência especial, esse recurso de um magnífico tato.

E não nos esqueçamos nunca da melancolia, do gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e imprescindível. Quem foge do mau gosto cai no gelo.

  
Referência:

NERUDA, Pablo. Sobre uma poesía sin pureza. In: __________. Antologia poética. Tradução de Eliane Zagury. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 96-98.

Nenhum comentário:

Postar um comentário