Numa digressão que dignifica a arte literária, plenamente meritória de
grandes autores – como ele próprio se mostrou ao longo de toda a sua carreira –
Neruda acerca-se do fenômeno poético com as divisas da própria poesia,
apartando-a de concepções que lhe são forasteiras, extrínsecas, incongruentes.
Como o panegírico
de Octavio Paz sobre a poesia, o de Neruda satura o firmamento das letras com
imagens capturadas ao próprio quotidiano, plasmadas em seu estado mental de
homem intensamente engajado nas coisas do mundo. Íntegra e profundamente!
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda
(Retrato de Alejandro
Cabeza)
Sobre una poesía sin pureza (*)
Es muy conveniente, en ciertas horas
del día o de la noche, observar profundamente los objetos en descanso: las
ruedas que han recorrido largas, polvorientas distancias, soportando grandes
cargas vegetales o minerales, los sacos de las carbonerías, los barriles, las
cestas, los mangos y asas de los instrumentos del carpintero. De ello se
desprende el contacto del hombre y de la tierra como una lección para el
torturado poeta lírico. Las superficies usadas, el gasto que las manos han
infligido a Ias cosas, la atmósfera a menudo trágica y siempre patética de
estos objetos, infunde una especie de atracción no despreciable hacia la
realidad del mundo.
La confusa impureza de los seres
humanos se percibe en ellos, la agrupación, uso y desuso de los materiales, las
huellas del pie y los dedos, la constancia de una atmósfera inundando las cosas
desde lo interno y lo externo.
Así sea la poesía que buscamos, gastada
como por un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y el humo,
oliente a orina y a azucena, salpicada por las diversas profesiones que se
ejercen dentro y fuera de la ley.
Una poesía impura como un traje, como
un cuerpo, con manchas de nutrición, y actitudes vergonzosas, con arrugas,
observaciones, sueños, vigilia, profecías, declaraciones de amor y de odio,
bestias, sacudidas, idilios, creencias políticas, negaciones, dudas,
afirmaciones, impuestos.
La sagrada ley del madrigal y los
decretos del tacto, olfato, gusto, vista, oído, el deseo de justicia, el deseo
sexual, el ruido del océano, sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar
deliberadamente nada, la entrada en la profundidad de las cosas en un acto de
arrebatado amor, y el producto poesía manchado de palomas digitales, con
huellas de dientes y hielo, roído tal vez levemente por el sudor y el uso.
Hasta alcanzar esa dulce superficie del instrumento tocado sin descanso, esa
suavidad durísima de la madera manejada, del orgulloso hierro. La flor, el
trigo, el agua tienen también esa consistencia especial, ese recuerdo de un
magnífico tacto.
Y no olvidemos nunca la melancolía, el
gastado sentimentalismo, perfectos frutos impuros de maravillosa calidad
olvidada, dejados atrás por el frenético libresco: la luz de la luna, el cisne
en el anochecer, “corazón mío” son sin duda lo poético elemental e
imprescindible. Quien huye del mal gusto cae en el hielo.
(*) Publicado
originalmente na revista “Caballo Verde para la Poesía”, nº 1, Madrid, outubro
de 1935.
Os Poetas Contemporâneos
(Antonio María
Esquivel: 1846)
Sobre uma poesia sem pureza
É muito conveniente, em certas horas do
dia ou da noite, observar profundamente os objetos em descanso: as rodas que
percorreram longas, poeirentas distâncias, suportando grandes cargas vegetais
ou minerais, os sacos das carvoarias, os barris, as cestas, os cabos e asas dos
instrumentos do carpinteiro. Deles se desprende o contato do homem e da terra
como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o gasto
que as mãos infligiram às coisas, a atmosfera frequentemente trágica e sempre
patética destes objetos infunde uma espécie de atração não desprezível à
realidade do mundo.
A confusa impureza dos seres humanos se
percebe neles, o agrupamento, uso e desuso dos materiais, as marcas do pé e dos
dedos, a constância de uma atmosfera humana inundando as coisas a partir do
interno e do externo.
Assim seja a poesia que procuramos,
gasta como por um ácido pelos deveres da mão, penetrada pelo suor e pela
fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada pelas diversas profissões que se
exercem dentro e fora da lei.
Uma poesia impura como um traje, como
um corpo, com manchas de nutrição, e atitudes vergonhosas, com pregas,
observações, sonhos, vigília, profecias, declarações de amor e de ódio, bestas,
arrepios, idílios, credos políticos, negações, dúvidas, afirmações, impostos.
A sagrada lei do madrigal e os decretos
do tato, olfato, paladar, vista, ouvido, o desejo de justiça, o desejo sexual,
o ruído do oceano, sem excluir deliberadamente nada, sem aceitar
deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas num ato de
arrebatado amor, e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas de
dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e pelo uso. Até alcançar essa
doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima da
madeira manejada pelo orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também essa
consistência especial, esse recurso de um magnífico tato.
E não nos esqueçamos nunca da
melancolia, do gasto sentimentalismo, perfeitos frutos impuros de maravilhosa
qualidade esquecida, deixados de lado pelo frenético livresco: a luz da lua, o
cisne ao anoitecer, “vida minha” são sem dúvida o poético elementar e
imprescindível. Quem foge do mau gosto cai no gelo.
Referência:
NERUDA, Pablo. Sobre uma poesía sin
pureza. In: __________. Antologia
poética. Tradução de Eliane Zagury. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2012. p. 96-98.
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