De imediato, percebe-se
que o poema de Sena discorre longamente sobre os horrores da crueldade, da violência
e da opressão, a partir do que se representa na obra pictórica “Três de maio de
1808 em Madrid” (1814), de Francisco de Goya (1746-1828), nomeadamente, o
fuzilamento de 44 camponeses espanhóis, no monte Pio, nos arredores de Madrid,
por soldados da tropa napoleônica.
Enfatiza-se a cruel
realidade de que incontáveis pessoas têm sido vítimas de torturas, execuções e genocídios
por motivos injustos, tais como a sua origem ou raça, classe social, crenças ou
simplesmente por sua condição humana.
À vista de tais
iniquidades, os seus filhos a cuidarem do mundo que herdaram, não apenas para
si próprios, mas em memória daqueles que sofreram e lutaram antes deles por valores
caros à humanidade – como liberdade, justiça e dignidade –, depositando a sua
esperança de que, no futuro, não se repitam as atrocidades do passado e
possamos viver de um modo mais harmônico.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Carta a meus filhos
sobre os Fuzilamentos de Goya
Não sei, meus filhos,
que mundo será o vosso.
É possível, tudo é
possível, que ele seja
aquele que eu desejo
para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha
apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não
seja simples e natural.
Um mundo em que tudo
seja permitido,
conforme o vosso
gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito
pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não
seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse
para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos,
como devemos lutar,
por quanto nos pareça
a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer
delas uma fiel
dedicação à honra de
estar vivo.
Um dia sabereis que
mais que a humanidade
não tem conta o
número dos que pensaram assim,
amaram o seu
semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de
livre, de diferente,
e foram sacrificados,
torturados, espancados,
e entregues
hipocritamente à secular justiça,
para que os
liquidasse “com suma piedade e sem efusão
de sangue.”
Por serem fiéis a um
deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma
esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível
que lhes roía as entranhas,
foram estripados,
esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos
amontoados tão anonimamente quanto
haviam vivido,
ou suas cinzas
dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem
de uma raça, outras
por serem de uma
classe, expiaram todos
os erros que não
tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido.
Mas também aconteceu
e acontece que não
foram mortos.
Houve sempre
infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando
mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos
quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos,
este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre
mil, acontecida em Espanha
há mais de um século
e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um
pintor chamado Goya,
que tinha um coração
muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto
nada é, meus filhos.
Apenas um episódio,
um episódio breve,
nesta cadeia de que
sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e
sangue e algum sêmen
a caminho do mundo
que vos sonho.
Acreditai que nenhum
mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma
vida ou a alegria de tela.
É isto o que mais
importa – essa alegria.
Acreditai que a
dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa
alegria que vem
de estar-se vivo e
sabendo que nenhuma vez
alguém está menos
vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós
resista um pouco mais
à morte que é de
todos e virá.
Que tudo isto
sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém,
sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego
ou indiferença,
ardentemente espero.
Tanto sangue,
tanta dor, tanta
angústia, um dia
– mesmo que o tédio
de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em
vão. Confesso que
muitas vezes,
pensando no horror de tantos séculos
de opressão e
crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me
submerge inconsolável.
Serão ou não em vão?
Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses
milhões, quem restitui
não só a vida, mas
tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final,
meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que
não viveram, aquele objecto
que não fruíram,
aquele gesto
de amor, que fariam
“amanhã”.
E, por isso, o mesmo
mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com
cuidado, como coisa
que não é só nossa,
que nos é cedida
para a guardarmos
respeitosamente
em memória do sangue
que nos corre nas veias,
da nossa carne que
foi outra, do amor que
outros não amaram
porque lho roubaram.
Lisboa, 25/6/1959
Em: “Metamorfoses” (1963)
Três de Maio de 1808
em Madrid
(Francisco de Goya:
pintor espanhol)
Referência:
SENA, Jorge de. Carta
a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya. In: __________. Poesia I
(Obras Completas). Edição e coordenação de Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa, PT: Guimarães
Editores (Edição Babel), 2013. p. 347-351.
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