Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 26 de outubro de 2025

Jorge de Sena - Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya

De imediato, percebe-se que o poema de Sena discorre longamente sobre os horrores da crueldade, da violência e da opressão, a partir do que se representa na obra pictórica “Três de maio de 1808 em Madrid” (1814), de Francisco de Goya (1746-1828), nomeadamente, o fuzilamento de 44 camponeses espanhóis, no monte Pio, nos arredores de Madrid, por soldados da tropa napoleônica.

 

Enfatiza-se a cruel realidade de que incontáveis pessoas têm sido vítimas de torturas, execuções e genocídios por motivos injustos, tais como a sua origem ou raça, classe social, crenças ou simplesmente por sua condição humana.

 

À vista de tais iniquidades, os seus filhos a cuidarem do mundo que herdaram, não apenas para si próprios, mas em memória daqueles que sofreram e lutaram antes deles por valores caros à humanidade – como liberdade, justiça e dignidade –, depositando a sua esperança de que, no futuro, não se repitam as atrocidades do passado e possamos viver de um modo mais harmônico.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge de Sena

(1919-1978)

 

Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya

 

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, tudo é possível, que ele seja

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém

de nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto

o que vos interesse para viver. Tudo é possível,

ainda quando lutemos, como devemos lutar,

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade

não tem conta o número dos que pensaram assim,

amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

de insólito, de livre, de diferente,

e foram sacrificados, torturados, espancados,

e entregues hipocritamente à secular justiça,

para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão

de sangue.”

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,

a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas

à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,

foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto

haviam vivido,

ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras

por serem de uma classe, expiaram todos

os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência

de haver cometido. Mas também aconteceu

e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

aniquilando mansamente, delicadamente,

por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,

foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

há mais de um século e que por violenta e injusta

ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,

que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve,

nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)

de ferro e de suor e sangue e algum sêmen

a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém

vale mais do que uma vida ou a alegria de tela.

É isto o que mais importa – essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez

alguém está menos vivo ou sofre ou morre

para que um só de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente,

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,

e sobretudo sem desapego ou indiferença,

ardentemente espero. Tanto sangue,

tanta dor, tanta angústia, um dia

– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –

não hão de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objecto

que não fruíram, aquele gesto

de amor, que fariam “amanhã”.

E, por isso, o mesmo mundo que criemos

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

que não é só nossa, que nos é cedida

para a guardarmos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que

outros não amaram porque lho roubaram.

 

Lisboa, 25/6/1959

Em: “Metamorfoses” (1963)

 

Três de Maio de 1808 em Madrid

(Francisco de Goya: pintor espanhol)

 

Referência:

 

SENA, Jorge de. Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya. In: __________. Poesia I (Obras Completas). Edição e coordenação de Jorge Fazenda Lourenço. Lisboa, PT: Guimarães Editores (Edição Babel), 2013. p. 347-351.

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