Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 4 de outubro de 2025

Mahmoud Darwish - Não Me Desculpei com o Poço

Darwish expressa nestes versos uma profunda conexão com a terra e a história palestinas, suas raízes e tradições, num trânsito mental que vai de alguma resistência ou indiferença inicial até o respeito e a reverência induzidos por um sentido de pertencimento (ainda que o poeta possa estar falando a partir do exílio!).

 

Uma leitura mais abrangente do poema suscita no leitor a ideia de que o “poço” do título seja um ponto de convergência para as diversas dimensões da experiência humana: a psicológica, a histórica, a existencial e a espiritual. Afinal, as linhas de força que atravessam os versos imergem num décor metafórico além do qual o falante espera transcender o terrenal, com o objetivo de escapar às limitações físicas e mentais até um grau mais elevado de aprimoramento espiritual, alcançando assim sentido e propósito para os seus dias ou mesmo mantendo acesa alguma esperança de redenção.

 

O poema culmina com uma súplica de paz para o “desconhecido no poço”, aludindo, quiçá, aos conterrâneos mortos no conflito israelo-palestino, num ato retributivo a todos aqueles que têm sido assassinados na “terra da paz”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mahmoud Darwish

(1941-2008)

 

I Didn’t Apologize to the Well

 

I didn’t apologize to the well when I passed the well,

I borrowed from the ancient pine tree a cloud

and squeezed it like an orange, then waited for a gazelle

white and legendary. And I ordered my heart to be patient:

Be neutral as if you were not of me! Right here

the kind shepherds stood on air and evolved

their flutes, then persuaded the mountain quail toward

the snare. And right here I saddled a horse for flying toward

my planets, then flew. And right here the priestess

told me: Beware of the asphalt road and the cars

and walk upon your exhalation. Right here

I slackened my shadow and waited, I picked the tiniest

rock and stayed up late. I broke the myth and I broke.

And I circled the well until I flew from myself

to what isn’t of it. A deep voice shouted at me:

This grave isn’t your grave. So I apologized.

I read verses from the wise holy book, and said

to the unknown one in the well: Salaam upon you the day

you were killed in the land of peace, and the day you rise

from the darkness of the well alive!

 

In: “Don’t Apologize for What You’ve Done” (2003)

 

O velho poço

(Constantine Maleas: pintor grego)

 

Não Me Desculpei com o Poço

 

Não me desculpei com o poço quando por ele passei,

pedi emprestada uma nuvem ao velho pinheiro,

e espremi-a como a uma laranja, depois esperei por uma lendária

gazela branca. E ordenei ao meu coração para ser paciente:

“Sê neutro como se não fosses meu!” Justo aqui

os bons pastores exsurgiram no ar e tocaram

suas flautas, atraindo as codornizes da montanha

às armadilhas. Aqui mesmo selei um cavalo para voar

até meus planetas, e alcei voo. E bem aqui a sacerdotisa

me disse: cuidado com o asfalto e os veículos

e caminha sobre a tua exalação. Este é o exato lugar

onde relaxei a minha sombra e esperei, escolhi a mais pequena

pedra e fiquei acordado até tarde. Quebrei o mito e me quebrei.

Dei voltas ao redor do poço, até que voei de mim mesmo

para o que não lhe pertence. Uma voz grave gritou-me:

“Este túmulo não te pertence”, pelo que pedi-lhe desculpas.

Li versículos do sábio livro sagrado (1) e disse

ao desconhecido no poço: “Salaam (2) sobre ti no dia

em que foste morto na terra da paz, e no dia em que saíres

vivo da escuridão do poço!”

 

Em: “Não Te Desculpes pelo que Fizeste” (2003)

 

Notas:

 

(1). Referência ao Alcorão, livro sagrado da religião islâmica;

(2). Salaam: saudação árabe que significa “A paz de Deus esteja contigo”.

 

Referência:

 

DARWISH, Mahmoud. I didn’t apologize to the well. Translated from Arabic to English by Fady Joudah. In: __________. The butterfly’s burden: poems. A bilingual edition: Arabic x English. Port Townsend, WA: Copper Canyon Press, 2007. p. 197.

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