Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Gabriela Mistral - Beber

Das belas paisagens do Vale do Rio Branco, no Chile, à quietude serena da ilha de Porto Rico; da casa de infância, provavelmente em Vicuña, à região de Mitla, no México: levando em conta esse amplo espectro geográfico e até mesmo temporal, a poetisa celebra quer os torrões que a sustentaram, quer as pessoas com quem esteve, numa incursão exploratória sobre a simples ação de beber água – para ela, um ritual quase sagrado.

 

Deveras, os “gestos de criaturas” que lhe oferecem água têm o equivalente simbólico da humanidade que se compartilha no cuidado entre as pessoas, entre as gerações, entre o ser humano e a natureza, convertendo-se numa metáfora apropriada para a ideia de vida e de renascimento, ou, mais amplamente, de purificação e de renovo espiritual.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gabriela Mistral

(1889-1957)

 

Beber

 

Al Dr. Pedro de Alba

 

Recuerdo gestos de criaturas

y son gestos de darme el agua.

 

En el Valle de Río Blanco,

en donde nace el Aconcagua,

llegué a beber, salté a beber

en el fuete de una cascada,

que caía crinada y dura

y se rompía yerta y blanca.

Pegué mi boca al hervidero,

y me quemaba el agua santa,

y tres días sangró mi boca

de aquel sorbo del Aconcagua.

 

En el campo de Mitla, un día

de cigarras, de sol, de marcha,

me doblé a un pozo y vino un indio

a sostenerme sobre el agua,

y mi cabeza, como un fruto,

estaba dentro de sus palmas.

Bebía yo lo que bebía,

que era su cara con mi cara,

y en un relámpago yo supe

carne de Mitla ser mi casta.

 

En la Isla de Puerto Rico,

a la siesta de azul colmada,

mi cuerno quieto, las olas locas,

y como cien madres las palmas,

rompió una niña por donaire

junto a mi boca un coco de agua,

y yo bebí, como una hija,

agua de madre, agua de palma.

Y más dulzura no he bebido

con el cuerno ni con el alma.

 

A la casa de mis niñeces

mi madre me traía el agua.

Entre un sorbo y el otro sorbo

la veía sobre la jarra.

La cabeza más se subía

y la jarra más se abajaba.

Todavía yo tengo el valle,

tengo mi sed y su mirada.

Será esto la eternidad

que aún estamos como estábamos.

 

Recuerdo gestos de criaturas

y son gestos de darme el agua.

 

En: “Tala” (1938)

 

Garota romana em uma fonte

(Léon Bonnat: pintor francês)

 

Beber

 

Ao Dr. Pedro de Alba

 

Recordo gestos de criaturas

– gestos com que me deram água.

 

No vale do Rio Branco,

lá onde nasce o Aconcágua,

cheguei, desci para beber

no jorro de uma cascata

que tombava copada e dura

e se rompia tesa e branca.

Juntei a boca ao fervedouro

e queimava-me a água sagrada,

e três dias sangrou-me a boca

daquele sorvo do Aconcágua.

 

No campo de Mitla, um dia

de cigarras, de sol, de marcha,

dobrei-me sobre um poço, e um índio

sustentou-me por sobre as águas;

minha cabeça como um fruto

dentro de suas mãos estava;

bebia eu o que bebia

que era seu rosto com meu rosto;

e num instante percebi:

era idêntica a nossa casta.

 

Lá na ilha de Porto Rico,

numa sesta plena de azul,

meu corpo quieto, as ondas loucas

e como cem mães as palmeiras,

rompeu graciosa uma menina

na minha boca um coco de água;

e então bebi, como uma filha,

água materna, água de palma.

Nunca bebi tanta doçura

com o corpo nem sequer com a alma.

 

Na casa onde passei a infância

minha mãe matava-me a sede.

Entre um sorvo de água e outro sorvo

eu a via por sobre o jarro.

A cabeça sempre mais alta

e na frente o jarro mais baixo.

Ainda hoje contemplo o vale,

guardo a sede, seus olhos vejo.

Talvez seja isto a eternidade:

estarmos sempre como estávamos.

 

Recordo gestos de criaturas

– gestos com que me deram água.

 

Em: “Poda” (1938)

 

Referências:

 

Em Espanhol

 

MISTRAL, Gabriela. Beber. In: __________. Tala: poemas. Buenos Aires, AR: Editorial Losada, nov. 1946. p. 92-93

 

Em Português

 

MISTRAL, Gabriela. Beber. Tradução de Henriqueta Lisboa. In: __________. Poesias escolhidas. Tradução de Henriqueta Lisboa. Estudo introdutivo de Jorge Edwards. Ilustrações de Marianne Clouzot. Rio de Janeiro, GB: Editora Opera Mundi, 1973. p. 167-168. (‘Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura’)

Nenhum comentário:

Postar um comentário