Das belas paisagens
do Vale do Rio Branco, no Chile, à quietude serena da ilha de Porto Rico; da
casa de infância, provavelmente em Vicuña, à região de Mitla, no México: levando
em conta esse amplo espectro geográfico e até mesmo temporal, a poetisa celebra
quer os torrões que a sustentaram, quer as pessoas com quem esteve, numa
incursão exploratória sobre a simples ação de beber água – para ela, um ritual
quase sagrado.
Deveras, os “gestos
de criaturas” que lhe oferecem água têm o equivalente simbólico da humanidade que
se compartilha no cuidado entre as pessoas, entre as gerações, entre o ser
humano e a natureza, convertendo-se numa metáfora apropriada para a ideia de
vida e de renascimento, ou, mais amplamente, de purificação e de renovo
espiritual.
J.A.R. – H.C.
Gabriela Mistral
(1889-1957)
Beber
Al Dr. Pedro de Alba
Recuerdo gestos de
criaturas
y son gestos de darme
el agua.
En el Valle de Río
Blanco,
en donde nace el
Aconcagua,
llegué a beber, salté
a beber
en el fuete de una
cascada,
que caía crinada y
dura
y se rompía yerta y
blanca.
Pegué mi boca al
hervidero,
y me quemaba el agua
santa,
y tres días sangró mi
boca
de aquel sorbo del
Aconcagua.
En el campo de Mitla,
un día
de cigarras, de sol,
de marcha,
me doblé a un pozo y
vino un indio
a sostenerme sobre el
agua,
y mi cabeza, como un
fruto,
estaba dentro de sus
palmas.
Bebía yo lo que
bebía,
que era su cara con
mi cara,
y en un relámpago yo
supe
carne de Mitla ser mi
casta.
En la Isla de Puerto
Rico,
a la siesta de azul
colmada,
mi cuerno quieto, las
olas locas,
y como cien madres
las palmas,
rompió una niña por
donaire
junto a mi boca un coco
de agua,
y yo bebí, como una
hija,
agua de madre, agua
de palma.
Y más dulzura no he
bebido
con el cuerno ni con
el alma.
A la casa de mis
niñeces
mi madre me traía el
agua.
Entre un sorbo y el
otro sorbo
la veía sobre la
jarra.
La cabeza más se subía
y la jarra más se
abajaba.
Todavía yo tengo el
valle,
tengo mi sed y su
mirada.
Será esto la
eternidad
que aún estamos como
estábamos.
Recuerdo gestos de
criaturas
y son gestos de darme
el agua.
En: “Tala” (1938)
Garota romana em uma
fonte
(Léon Bonnat: pintor
francês)
Beber
Ao Dr. Pedro de Alba
Recordo gestos de
criaturas
– gestos com que me
deram água.
No vale do Rio
Branco,
lá onde nasce o
Aconcágua,
cheguei, desci para
beber
no jorro de uma
cascata
que tombava copada e
dura
e se rompia tesa e
branca.
Juntei a boca ao
fervedouro
e queimava-me a água
sagrada,
e três dias
sangrou-me a boca
daquele sorvo do
Aconcágua.
No campo de Mitla, um
dia
de cigarras, de sol,
de marcha,
dobrei-me sobre um
poço, e um índio
sustentou-me por
sobre as águas;
minha cabeça como um
fruto
dentro de suas mãos
estava;
bebia eu o que bebia
que era seu rosto com
meu rosto;
e num instante
percebi:
era idêntica a nossa
casta.
Lá na ilha de Porto
Rico,
numa sesta plena de
azul,
meu corpo quieto, as
ondas loucas
e como cem mães as
palmeiras,
rompeu graciosa uma
menina
na minha boca um coco
de água;
e então bebi, como
uma filha,
água materna, água de
palma.
Nunca bebi tanta
doçura
com o corpo nem
sequer com a alma.
Na casa onde passei a
infância
minha mãe matava-me a
sede.
Entre um sorvo de
água e outro sorvo
eu a via por sobre o
jarro.
A cabeça sempre mais
alta
e na frente o jarro
mais baixo.
Ainda hoje contemplo
o vale,
guardo a sede, seus
olhos vejo.
Talvez seja isto a eternidade:
estarmos sempre como
estávamos.
Recordo gestos de
criaturas
– gestos com que me
deram água.
Em: “Poda” (1938)
Referências:
Em Espanhol
MISTRAL, Gabriela.
Beber. In: __________. Tala: poemas. Buenos Aires, AR: Editorial Losada,
nov. 1946. p. 92-93
Em Português
MISTRAL, Gabriela.
Beber. Tradução de Henriqueta Lisboa. In: __________. Poesias escolhidas.
Tradução de Henriqueta Lisboa. Estudo introdutivo de Jorge Edwards. Ilustrações
de Marianne Clouzot. Rio de Janeiro, GB: Editora Opera Mundi, 1973. p. 167-168.
(‘Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura’)
❁

Nenhum comentário:
Postar um comentário