Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 18 de outubro de 2025

Eucanaã Ferraz - El laberinto de la soledad

Ferraz retrata a volta à Terra do cosmonauta russo Yuri Gagarin (1943-1968), depois da histórica viagem espacial que o converteu no primeiro ser humano a orbitar o nosso planeta: são versos nos quais sintetizam-se os traços de um olhar renovado e quase infantil de Yuri, depois de haver contemplado a Terra a partir do espaço.

 

Nesse “labirinto da solidão” – em notória alusão à já clássica obra do mexicano Octavio Paz (1914-998) –, o russo decerto experimentou uma transformação interna que não foi capaz de compartilhar, sem que aos pares parecesse eivada de tautologias ou banalidades – como “a Terra é azul”, “a água é transparente” ou “a neve é branca” –, o que o levou a um pungente isolamento emocional.

 

A jornada espacial, ao mesmo tempo que épica e grandiosa, lançou-o num estado de sensibilidade extrema, abrindo-lhe novas perspectivas sobre as coisas simples e cotidianas, aparentemente menos tocadas pela mística do cosmos do que pela beleza observável nas coisas mais triviais.

 

Ao final, o falante sugere que a experiência de Gagarin o teria confrontado com a finitude da vida e o mistério da morte, temas sobre os quais, seja como for, permanecemos ainda hoje num estado de irresolução.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eucanaã Ferraz

(n. 1961)

 

El laberinto de la soledad

 

Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.

Depois disso, ao ver que a folha era verde disse

a folha é verde, via que a água era transparente

 

e dizia a água é transparente via a chuva que caía

e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia

e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam

 

que Yuri era só obviedades enquanto outros

atestavam que tolo se limitava a tautologias

e inimigos juravam que Yuri era um idiota

 

que se comovia mais que o esperado; chorava

nos museus, teatros, diante da televisão, alguém

varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,

 

sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca

a neve e chorava; se estava triste, se alegre,

essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia

 

um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:

o homem estava doido; mas sua mulher assegurava

que ele apenas voltara sentimental. O astronauta

 

lacrimoso sentia o peito tangido de amor total

ao ver as filhas brincando de passar anel

e de melancolia ao deparar com antigas fotos

 

de Klushino, não aquela dos livros, estufada

de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,

dos carpinteiros, das luas e lobisomens,

 

de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,

de seus primos, coisas assim, luvas velhas,

furadas, que servem somente para fazer chorar.

 

Era constrangedor o modo como os olhos

de Yuri pareciam transpassar as paredes

nas reuniões de trabalho, nas solenidades,

 

nas discussões das metas para o próximo ano

e no instante seguinte podiam se encher de água

e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso

 

inexplicável; um velho general, ironicamente

ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri

Gagarin vinha sofrendo de uma ternura

 

devastadora; sabe-se lá o que isso significava,

mas parecia que era exatamente isso, porque

o herói não voltou místico ou religioso, ficou

 

doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade

de um pequeno-burguês, conforme sentença

do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,

 

caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado, tropeçara

de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.

Médicos recomendaram vodca, férias, Marx,

 

barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo

para ser igual a todo mundo; mas,

quando parecia apenas banal, logo dizia coisas

 

como a leveza é leve. Desde o início,

quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo

e não nos contou como é a morte.

 

O retorno de Yuri Gagarin

(Sergey A. Grigoriev: pintor ucraniano)

 

Referência:

 

FERRAZ, Eucanaã. El laberinto de la soledad. In: __________. Sentimental: poemas. 1.ed., 1. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2021. p. 28-30.

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