Ferraz retrata a
volta à Terra do cosmonauta russo Yuri Gagarin (1943-1968), depois da histórica
viagem espacial que o converteu no primeiro ser humano a orbitar o nosso
planeta: são versos nos quais sintetizam-se os traços de um olhar renovado e quase
infantil de Yuri, depois de haver contemplado a Terra a partir do espaço.
Nesse “labirinto da
solidão” – em notória alusão à já clássica obra do mexicano Octavio Paz (1914-998)
–, o russo decerto experimentou uma transformação interna que não foi capaz de
compartilhar, sem que aos pares parecesse eivada de tautologias ou banalidades –
como “a Terra é azul”, “a água é transparente” ou “a neve é branca” –, o que o
levou a um pungente isolamento emocional.
A jornada espacial, ao
mesmo tempo que épica e grandiosa, lançou-o num estado de sensibilidade extrema,
abrindo-lhe novas perspectivas sobre as coisas simples e cotidianas, aparentemente
menos tocadas pela mística do cosmos do que pela beleza observável nas coisas
mais triviais.
Ao final, o falante sugere
que a experiência de Gagarin o teria confrontado com a finitude da vida e o
mistério da morte, temas sobre os quais, seja como for, permanecemos ainda hoje
num estado de irresolução.
J.A.R. – H.C.
Eucanaã Ferraz
(n. 1961)
El laberinto de la
soledad
Yuri viu que a Terra
é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver
que a folha era verde disse
a folha é verde, via
que a água era transparente
e dizia a água é
transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está
caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a
noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só
obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se
limitava a tautologias
e inimigos juravam
que Yuri era um idiota
que se comovia mais
que o esperado; chorava
nos museus, teatros,
diante da televisão, alguém
varrendo a manhã,
cafés vazios no fim da noite,
sacos de carvão; a
neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se
estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria
se via um besouro dizia
um besouro e ria;
vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido;
mas sua mulher assegurava
que ele apenas
voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o
peito tangido de amor total
ao ver as filhas
brincando de passar anel
e de melancolia ao
deparar com antigas fotos
de Klushino, não
aquela dos livros, estufada
de pendões e
medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das
luas e lobisomens,
de seu tio Pavel, de
sua mãe, do trem,
de seus primos,
coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem
somente para fazer chorar.
Era constrangedor o
modo como os olhos
de Yuri pareciam
transpassar as paredes
nas reuniões de
trabalho, nas solenidades,
nas discussões das
metas para o próximo ano
e no instante
seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam
quase azuis de um sorriso
inexplicável; um
velho general, ironicamente
ou não, afirmara em
relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha
sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se
lá o que isso significava,
mas parecia que era
exatamente isso, porque
o herói não voltou
místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer
eu amo você com a facilidade
de um
pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas
fechadas. Certo dia, contam,
caiu aos pés de
Octavio Paz; descuidado, tropeçara
de paixão pelas telas
cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram
vodca, férias, Marx,
barbitúricos; o
pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo
mundo; mas,
quando parecia apenas
banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve.
Desde o início,
quiseram calá-lo; uma
pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como
é a morte.
O retorno de Yuri
Gagarin
(Sergey A. Grigoriev:
pintor ucraniano)
Referência:
FERRAZ, Eucanaã. El
laberinto de la soledad. In: __________. Sentimental: poemas. 1.ed., 1.
reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2021. p. 28-30.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário