Este poema de Merton aborda a tensão entre o labor do escritor, o sacrifício pessoal a um propósito religioso e a busca por um significado espiritual num mundo assolado pelo caos: o monge trapista oscila entre considerar o seu livro uma extensão de sua própria cruz – um sacrifício em obediência a Cristo –, e vê-lo como não mais do que uma espécie de fardo que lhe roubou tempo e energia.
O sujeito lírico teme
que a sua obra, em vez de o aproximar de uma eternidade pura e cristalina,
obscureça o seu caminho e o leve a uma dupla perda. Nada obstante, espera que o
seu livro encontre um lugar de acolhida neste mundo secularizado – ruidoso e
sem Cristo –, provando de algum modo o seu valor junto àqueles capturados pela “roda
da infelicidade”.
J.A.R. – H.C.
Thomas Merton
(1915-1968)
Now is the day of our farewell in fear, lean pages:
And shall I leave some blessing on the half of me
you
have devoured?
Were you, in clean obedience, my Cross,
Sent to exchange my life for Christ’s in labor?
How shall the seeds upon those furrowed papers
flower?
Or have I only bled to sow you full of stones and
thorns,
Feeding my minutes to my own dead will?
Or will your little shadow fatten in my life’s last
hour
And darken for a space my gate to white eternity?
And will I wear you once again, in Purgatory,
Around my mad ribs like a shirt of flame?
Or bear you on my shoulders for a sorry jubilee
My Sinbad’s burden?
Is that the way you’d make me both-ways’ loser,
Paying the prayers and joys you stole of me,
You thirsty traitor, in my Trappist mornings!
Go, stubborn talker,
Find you a station on the loud world’s corners,
And try there, (if your hands be clean) your length
of patience:
Use there the rhythms that upset my silences,
And spend your pennyworth of prayer
There in the clamor of the Christless avenues:
And try to ransom some one prisoner
Out of those walls of traffic, out of the wheels
of that unhappiness!
In: “Figures for an
Apocalypse” (1947)
Homem com um livro
(Parmigianino: pintor
italiano)
O poeta a seu livro
Minguadas páginas, este
é o dia tão temido de nossa despedida:
Restará alguma benção
nessa metade de mim que
haveis devorado?
Fostes vós, em puro
voto de obediência, a Cruz
Que me foi enviada
para confiar minha vida ao serviço de Cristo?
Como florescerão as
sementes lançadas nos sulcos destes papéis?
Ou apenas terei sangrado
para vos semear cheias de pedras
e espinhos,
Consumindo-me os
minutos com minha própria e infecunda
vontade?
Ou será que vossa
pequena sombra se expandirá em minha
derradeira hora,
Turvando por
instantes o meu acesso à radiosa eternidade?
Haverei de vos levar
uma vez mais, no Purgatório,
Ao redor de minhas
exasperadas costelas, como uma jaqueta
de fogo?
Ou vos carregarei
sobre os ombros para um triste jubileu,
Como se Simbad fosse
a suportar um fardo? (*)
É assim que me
converteríeis em duplo perdedor –
Vós, traidor sedento
–, premiando-vos com as orações e alegrias
Que me roubastes em
minhas manhãs trapistas!
Ide, falastrão
obstinado,
Encontrai uma estação
nas esquinas deste mundo barulhento,
E lá submetei à prova
(se tiverdes limpas as mãos) o alcance
de vossa paciência:
Lá utilizai os ritmos
que perturbam os meus silêncios;
Despendei o vosso
cêntimo de reza
Entre os clamores das
avenidas privadas de Cristo:
E tentai resgatar
algum prisioneiro
Preso àquelas colunas
do tráfego, para fora das rodas de tanta
infelicidade!
Em: “Figuras para um
apocalipse” (1947)
Nota:
(*). Referência a Simbad, o Marujo, o famoso personagem das histórias das “Mil e Uma Noites”, sempre disposto a carregar fardos muito pesados e estranhos durante suas épicas viagens marítimas; alguns desses “fardos” incluem estatuetas gigantes e ocas, cheias de joias, animais exóticos e assim por diante.
Referência:
MERTON, Thomas. The
poet, to his book. In: __________. The collected poems of Thomas Merton.
6th print. New York, NY: New Directions, 1980. p. 192-193.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário