Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 19 de outubro de 2025

Eugenio Montale - Quase uma fantasia

Permeados por uma atmosfera de transformação introspectiva, nos quais a luz e o cenário ao redor atuam como metáforas para um despertar emocional, estes versos de Montale servem bem para ilustrar como a poesia não somente é um meio para se expressar sentimentos, senão também uma forma de se codificar e decifrar as experiências humanas, tanto mais quando a linguagem em que encerrada conjuga elementos visuais e simbólicos capazes de apreender os momentos de autêntica epifania do poeta.

 

O falante, em “solitária alegria”, vivencia instantes de paz profunda e meditativa, de tranquila conexão com a natureza, refletindo sobre a contingente dualidade das coisas que lhe chegam aos olhos e à mente – a paisagem exterior e o mundo interior, o visível e o invisível, a claridade e a escuridão, o passado e o presente –, enquanto discerne, na paisagem do entorno, que já se aproxima o ponto de inflexão da toada invernal aos primeiros acordes da primavera.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eugenio Montale

(1896-1981)

 

Quasi una fantasia

 

Raggiorna, lo presento

da un albore di frusto

argento alle pareti:

lista un barlume le finestre chiuse.

Torna l’avvenimento

del sole e le diffuse

voci, i consueti strepiti non porta.

 

Perché? Penso ad un giorno d’incantesimo

e delle giostre d’ore troppo uguali

mi ripago. Traboccherà la forza

che mi turgeva, incosciente mago,

da grande tempo. Ora m’affaccerò,

subisserò alte case, spogli viali.

 

Avrò di contro un paese d’intatte nevi

ma lievi come viste in un arazzo.

Scivolerà dal cielo bioccoso un tardo raggio.

Gremite d’invisibile luce selve e colline

mi diranno l’elogio degl’ilari ritorni.

 

Lieto leggerò i neri

segni dei rami sul bianco

come un essenziale alfabeto.

Tutto il passato in un punto

dinanzi mi sarà comparso.

Non turberà suono alcuno

quest’allegrezza solitaria.

Filerà nell’aria

o scenderà s’un paletto

qualche galletto di marzo.

 

Luz do sol no segundo piso

(Edward Hopper: pintor norte-americano)

 

Quase uma fantasia

 

Amanhece, eu pressinto

pelo alvor de prata

frusta nas paredes:

risca um vislumbre as janelas fechadas.

De novo o advento

do sol e as difusas

vozes, ruídos de hábito não traz.

 

Por quê? Penso num dia encantado

e do carrossel de horas sempre iguais

me reparo. Transbordará a força

que me intumescia, mago inconsciente,

há muito tempo. Agora hei de ir lá fora,

arrasar altas casas, nuas avenidas.

 

Diante mim terei terra de intactas neves

mas leves como vistas em tapeçaria.

Deslizará do céu cotonoso um raio tardio.

Prenhes de luz invisível, florestas e montes

far-me-ão o louvor dos regressos festivos.

 

Lerei contente os negros

signos de ramos no branco

como um essencial alfabeto.

Há o passado em conjunto

de ser-me adiante bem visto.

Não há de turvar som algum

essa alegria solitária.

Cruzará o ar

ou pousará numa estaca

algum galinho de março.

 

Referência:

 

MONTALE, Eugenio. Quasi una fantasia / Quase uma fantasia. Tradução de Renato Xavier. In: __________. Ossos de sépia: 1920-927. Tradução, prefácio e notas de Renato Xavier. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Em italiano: p. 48; em português: p. 49.

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