Permeados por uma
atmosfera de transformação introspectiva, nos quais a luz e o cenário ao redor
atuam como metáforas para um despertar emocional, estes versos de Montale
servem bem para ilustrar como a poesia não somente é um meio para se expressar
sentimentos, senão também uma forma de se codificar e decifrar as experiências
humanas, tanto mais quando a linguagem em que encerrada conjuga elementos
visuais e simbólicos capazes de apreender os momentos de autêntica epifania do
poeta.
O falante, em “solitária
alegria”, vivencia instantes de paz profunda e meditativa, de tranquila conexão
com a natureza, refletindo sobre a contingente dualidade das coisas que lhe chegam
aos olhos e à mente – a paisagem exterior e o mundo interior, o visível e o
invisível, a claridade e a escuridão, o passado e o presente –, enquanto
discerne, na paisagem do entorno, que já se aproxima o ponto de inflexão da toada
invernal aos primeiros acordes da primavera.
J.A.R. – H.C.
Eugenio Montale
(1896-1981)
Quasi una fantasia
Raggiorna, lo
presento
da un albore di
frusto
argento alle pareti:
lista un barlume le
finestre chiuse.
Torna l’avvenimento
del sole e le diffuse
voci, i consueti
strepiti non porta.
Perché? Penso ad un
giorno d’incantesimo
e delle giostre d’ore
troppo uguali
mi ripago.
Traboccherà la forza
che mi turgeva,
incosciente mago,
da grande tempo. Ora
m’affaccerò,
subisserò alte case,
spogli viali.
Avrò di contro un
paese d’intatte nevi
ma lievi come viste
in un arazzo.
Scivolerà dal cielo
bioccoso un tardo raggio.
Gremite d’invisibile
luce selve e colline
mi diranno l’elogio
degl’ilari ritorni.
Lieto leggerò i neri
segni dei rami sul
bianco
come un essenziale
alfabeto.
Tutto il passato in
un punto
dinanzi mi sarà
comparso.
Non turberà suono
alcuno
quest’allegrezza
solitaria.
Filerà nell’aria
o scenderà s’un
paletto
qualche galletto di
marzo.
Luz do sol no segundo
piso
(Edward Hopper:
pintor norte-americano)
Quase uma fantasia
Amanhece, eu
pressinto
pelo alvor de prata
frusta nas paredes:
risca um vislumbre as
janelas fechadas.
De novo o advento
do sol e as difusas
vozes, ruídos de
hábito não traz.
Por quê? Penso num
dia encantado
e do carrossel de
horas sempre iguais
me reparo. Transbordará
a força
que me intumescia,
mago inconsciente,
há muito tempo. Agora
hei de ir lá fora,
arrasar altas casas,
nuas avenidas.
Diante mim terei
terra de intactas neves
mas leves como vistas
em tapeçaria.
Deslizará do céu
cotonoso um raio tardio.
Prenhes de luz
invisível, florestas e montes
far-me-ão o louvor
dos regressos festivos.
Lerei contente os
negros
signos de ramos no branco
como um essencial
alfabeto.
Há o passado em
conjunto
de ser-me adiante bem
visto.
Não há de turvar som
algum
essa alegria
solitária.
Cruzará o ar
ou pousará numa
estaca
algum galinho de
março.
Referência:
MONTALE, Eugenio. Quasi
una fantasia / Quase uma fantasia. Tradução de Renato Xavier. In: __________. Ossos
de sépia: 1920-927. Tradução, prefácio e notas de Renato Xavier. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 2011. Em italiano: p. 48; em português: p. 49.
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