Andresen nos descreve
um quadro vibrante – e ao mesmo tempo contrastante – da Lisboa noturna,
capturando o que se expõe aos olhos no bairro da Graça, um labirinto cheio de
luzes e de sombras, de ruídos e de silêncios, de agitação e de serenidade, onde
o tradicional e o moderno, o individual e o coletivo, traduzem-se em expressões
imbricadas do mais sensorial lirismo.
A voz lírica sente-se
solitária frente a esse cenário urbano – notoriamente o que se satura com as
luzes artificiais dos anúncios, dos bares, dos cinemas –, por ela designado como
“cidade alheia” –, encontrando, nada obstante, reconforto e esperança no límpido
silêncio das estrelas, sempre firmes a iluminar “o cais, o bordel e as ruas”.
J.A.R. – H.C.
Sophia de M. B. Andresen
(1919-2004)
Nocturno da Graça
Há um rumor de bosque
no pequeno jardim
Um rumor de bosque no
canto dos cedros
Sob o íman azul da
lua cheia
O rio cheio de
escamas brilha.
Negra cheia de luzes
brilha a cidade alheia.
Brilha a cidade dos
anúncios luminosos
Com espiritismo bares
cinemas
Com torvas janelas e
seus torvos gozos
Brilha a cidade
alheia.
Com seus bairros de becos
e de escadas
De candeeiros tristes
e nostálgicas
Mulheres lavando a
loiça em frente das janelas
Ruas densas de gritos
abafados
Castanholas de passos
pelas esquinas
Viragens chiadas dos
carros
Vultos atrás das
cortinas
Ciclopes alucinados.
De igreja em igreja
batem a hora os sinos
E uma paz de convento
ali perdura
Como se a antiga
cidade se erguesse das ruínas
Com sua noite trémula
de velas
Cheia de aventurança
e de sossego.
Mas a cidade alheia
brilha
Numa noite insone
De luzes fluorescentes
Numa noite cega surda
presa
Onde soluça uma
queixa cortada.
Sozinha estou contra
a cidade alheia.
Comigo
Sobre o cais sobre o
bordel e sobre a rua
Límpido e aceso
O silêncio dos astros
continua.
Em: “Mar Novo” (1958)
Graça: Lisboa
(Elena Petrova Gancheva:
artista búlgara)
Referência:
ANDRESEN, Sophia de
Mello Breyner. In: __________. Obra poética. Prefácio de Maria Andresen
Sousa Tavares. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2018. p.
402-403. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário