Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Sophia de Mello Breyner Andresen - Nocturno da Graça

Andresen nos descreve um quadro vibrante – e ao mesmo tempo contrastante – da Lisboa noturna, capturando o que se expõe aos olhos no bairro da Graça, um labirinto cheio de luzes e de sombras, de ruídos e de silêncios, de agitação e de serenidade, onde o tradicional e o moderno, o individual e o coletivo, traduzem-se em expressões imbricadas do mais sensorial lirismo.

 

A voz lírica sente-se solitária frente a esse cenário urbano – notoriamente o que se satura com as luzes artificiais dos anúncios, dos bares, dos cinemas –, por ela designado como “cidade alheia” –, encontrando, nada obstante, reconforto e esperança no límpido silêncio das estrelas, sempre firmes a iluminar “o cais, o bordel e as ruas”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Sophia de M. B. Andresen

(1919-2004)

 

Nocturno da Graça

 

Há um rumor de bosque no pequeno jardim

Um rumor de bosque no canto dos cedros

Sob o íman azul da lua cheia

O rio cheio de escamas brilha.

Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.

 

Brilha a cidade dos anúncios luminosos

Com espiritismo bares cinemas

Com torvas janelas e seus torvos gozos

Brilha a cidade alheia.

 

Com seus bairros de becos e de escadas

De candeeiros tristes e nostálgicas

Mulheres lavando a loiça em frente das janelas

Ruas densas de gritos abafados

Castanholas de passos pelas esquinas

Viragens chiadas dos carros

Vultos atrás das cortinas

Ciclopes alucinados.

 

De igreja em igreja batem a hora os sinos

E uma paz de convento ali perdura

Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas

Com sua noite trémula de velas

Cheia de aventurança e de sossego.

 

Mas a cidade alheia brilha

Numa noite insone

De luzes fluorescentes

Numa noite cega surda presa

Onde soluça uma queixa cortada.

 

Sozinha estou contra a cidade alheia.

Comigo

Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua

Límpido e aceso

O silêncio dos astros continua.

 

Em: “Mar Novo” (1958)

 

Graça: Lisboa

(Elena Petrova Gancheva: artista búlgara)

 

Referência:

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. In: __________. Obra poética. Prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2018. p. 402-403. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)

Nenhum comentário:

Postar um comentário