Muito do que
representa a vida manifesta-se por meio de uma “disritmia” – diz-nos a poetisa
mineira –, um fluido e incessante vaivém entre o prosaico e o transcendente, o profano
e o sagrado, o humano e o divino, num jogo de trocas em que erótico entrelaça-se
à alma, uma vez que não somente carnal, conectando-se à essência mesma do ser
humano.
Em outros termos: a
tensão marcante entre o espiritual e o corporal nos versos do poema revela uma
visão inusitada da sexualidade, para além de mera expressão do instinto, configurando
um imbricado painel onde a criação e a finitude da vida – atreladas à
sexualidade enquanto ato de perpetuação da presença humana, bem assim de seu
oposto, na medida em que tenda a exprimir dinâmicas destrutivas e dolorosas –, acabam
por ecoar uma presença divina dotada de pendores ambivalentes.
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1935)
Disritmia
Os velhos cospem sem
nenhuma destreza
e os velocípedes
atrapalham o trânsito no passeio.
O poeta obscuro
aguarda a crítica
e lê seus versos, as
três vezes por dia,
feito um monge com
seu livro de horas.
A escova ficou velha
e não penteia.
Neste exato momento o
que interessa
são os cabelos
desembaraçados.
Entre as pernas
geramos e sobre isso
se falará até o fim
sem que muitos entendam:
erótico é a alma.
Se quiser, ponho
agora a ária na quarta corda,
pra me sentir
clemente e apaziguada.
O que entendo de Deus
é sua ira,
não tenho outra
maneira de dizer.
As bolas contra a
parede me desgostam,
mas os meninos riem
satisfeitos.
Tarde como a de hoje,
vi centenas.
Não sinto angústia,
só uma espera ansiosa.
Alguma coisa vai
acontecer.
Não existe o destino.
Quem é premente é
Deus.
Em: “Bagagem” (1976)
A caixa de joias
(John William Godward:
pintor inglês)
Referência:
PRADO, Adélia.
Disritmia. In: __________. Poesia reunida. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 2015. p. 46-47.
❁


Nenhum comentário:
Postar um comentário