Mediante uma prosa
poética rica em imagens e denotações sensoriais, a autora norte-americana nos
imerge em uma paisagem exótica repleta de cachoeiras, nuvens e montanhas que
mais se assemelham a navios encalhados, com o fito de nos fazer ver que a busca por
novos horizontes e experiências não passa tão apenas por valorizar esses
grandes cenários ou panoramas, senão também os pequenos detalhes, a beleza do
aparentemente insignificante.
Com efeito, Bishop explora
a tensão entre a vontade de viajar para conhecer novos lugares e o conforto de
ficar em casa, levantando questões sobre se é a falta de imaginação que nos
leva a procurar destinos distantes, ou se o francês Blaise Pascal (1623-1662) estava
certo ao sugerir que basta sentar-se calmamente num quarto, para que se possa empreender
itinerários capazes de levar às delícias do encantamento.
Parece-lhe que,
afinal de contas, o aconchego do lar ou o mais remoto destino de uma excursão
importam menos do que a capacidade de apreciar o espetáculo, a harmonia e graça
de tudo o que nos circunda a cada momento, seja num lugar familiar seja em
terras distantes.
J.A.R. – H.C.
Elizabeth Bishop
(1911-1979)
Questions of Travel
There are too many
waterfalls here; the crowded streams
hurry too rapidly
down to the sea,
and the pressure of
so many clouds on the mountaintops
makes them spill over
the sides in soft slow-motion,
turning to waterfalls
under our very eyes.
– For if those
streaks, those mile-long, shiny, tearstains,
aren’t waterfalls
yet,
in a quick age or so,
as ages go here,
they probably will
be.
But if the streams
and clouds keep travelling, travelling,
the mountains look
like the hulls of capsized ships,
slime-hung and
barnacled.
Think of the long
trip home.
Should we have stayed
at home and thought of here?
Where should we be
today?
Is it right to be
watching strangers in a play
in this strangest of
theatres?
What childishness is
it that while there’s a breath of life
in our bodies, we are
determined to rush
to see the sun the
other way around?
The tiniest green
hummingbird in the world?
To stare at some
inexplicable old stonework,
inexplicable and
impenetrable,
at any view,
instantly seen and
always, always delightful?
Oh, must we dream our
dreams
and have them, too?
And have we room
for one more folded sunset,
still quite warm?
But surely it would
have been a pity
not to have seen the
trees along this road,
really exaggerated in
their beauty,
not to have seen them
gesturing
like noble
pantomimists, robed in pink.
– Not to have had to
stop for gas and heard
the sad, two-noted,
wooden tune
of disparate wooden
clogs
carelessly clacking
over
a grease-stained
filling-station floor.
(In another country
the clogs would all be tested.
Each pair there would
have identical pitch.)
– A pity not to have
heard
the other, less
primitive music of the fat brown bird
who sings above the
broken gasoline pump
in a bamboo church of
Jesuit baroque:
three towers, five
silver crosses.
– Yes, a pity not to
have pondered,
blurr’dly and
inconclusively,
on what connection
can exist for centuries
between the crudest
wooden footwear
and, careful and
finicky,
the whittled
fantasies of wooden cages.
– Never to have
studied history in
the weak calligraphy
of songbirds’ cages.
– And never to have
had to listen to rain
so much like
politicians’ speeches:
two hours of
unrelenting oratory
and then a sudden
golden silence
in which the
traveller takes a notebook, writes:
“Is it lack of
imagination that makes us come
to imagined places,
not just stay at home?
Or could Pascal have
been not entirely right
about just sitting
quietly in one’s room?
Continent, city,
country, society:
the choice is never
wide and never free.
And here, or there...
No. Should we have stayed at home,
wherever that may
be?”
In: “Questions of
Travel” (1965)
A Viajante
(Liubov Popova:
artista russa)
Questões de Viagem
Aqui há um excesso de
cascatas; os rios amontoados
correm depressa
demais em direção ao mar,
e são tantas nuvens a
pressionar os cumes das montanhas
que elas transbordam
encosta abaixo, em câmara lenta,
virando cachoeiras
diante de nossos olhos.
– Porque se aqueles
riscos lustrosos, quilométricos rastros
de lágrimas,
ainda não são
cascatas,
dentro de uma breve
era (pois são breves as eras daqui)
provavelmente serão.
Mas se os rios e as
nuvens continuam viajando, viajando,
então as montanhas
lembram cascos de navios soçobrados,
cobertos de limo e
cracas.
Pensemos na longa
viagem de volta.
Devíamos ter ficado
em casa pensando nas terras daqui?
Onde estaríamos hoje?
Será direito ver
estranhos encenando uma peça
neste teatro tão
estranho?
Que infantilidade nos
impele, enquanto houver
um sopro de vida
no corpo, a partir
decididos a ver
o sol nascendo do
outro lado?
O menor beija-flor
verde do mundo?
Ficar contemplando
uma antiga e inexplicável
obra de cantaria,
inexplicável e
impenetrável,
qualquer paisagem,
imediatamente vista e
sempre, sempre deleitosa?
Ah, por que
insistimos em sonhar os nossos sonhos
e vivê-los também?
E será que ainda
temos lugar
para mais um pôr do
sol extinto, ainda morno?
Mas certamente seria
uma pena
não ter visto as
árvores à beira dessa estrada,
de uma beleza
realmente exagerada,
não tê-las visto
gesticular
como nobres mímicos
de vestes róseas.
– Não ter parado num
posto de gasolina e ouvido
a melancólica melodia
de madeira, com duas notas só,
de um par de tamancos
descasados
pisando sonoros,
descuidados,
um chão todo sujo de
graxa.
(Num outro país, os
tamancos seriam todos testados.
Os dois pés
produziriam exatamente a mesma nota.)
– Uma pena não ter
ouvido
a outra música, menos
primitiva, do gordo pássaro pardo
cantando acima da
bomba de gasolina quebrada
numa igreja de bambu
de um barroco jesuítico:
três torres, cinco
cruzes prateadas.
– Sim, uma pena não
ter especulado,
confusa e
inconclusivamente,
sobre a relação que
existiria há séculos
entre o mais tosco
calçado de madeira
e, cuidadosas,
caprichosas,
as formas fantásticas
das gaiolas de madeira.
– Jamais ter estudado
história
na caligrafia fraca
das gaiolas.
– E nunca ter ouvido
essa chuva
tão parecida com
discurso de político:
duas horas de
oratória implacável
e de súbito um
silêncio de ouro
em que a viajante
abre o caderno e escreve:
“Será falta de
imaginação o que nos faz procurar
lugares imaginados
tão longe do lar?
Ou Pascal se enganou
quando escreveu
que é em nosso quarto
que devíamos ficar?
Continente, cidade,
país: não é tão sobeja
a escolha, a
liberdade, quanto se deseja.
Aqui, ali... Não.
Teria sido melhor ficar em casa,
onde quer que isso
seja?”
Em: “Questões de
Viagem” (1965)
Referência:
BISHOP, Elizabeth. Questions
of travel / Questões de viagem. Tradução de Paulo Henriques Britto. In:
__________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Edição bilíngue.
Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 1. ed. 2.
reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 226, 228 e 230;
em português: p. 227, 229 e 231.
❁