Neste soneto de Mandelstam
coexistem no estado anímico do falante, tensionados viscosamente, um lado mais acabrunhado,
a instilar substanciais gotas de melancolia, e outro mais devotado a
fascinar-se com a vitalidade e as manifestações de beleza – naturais ou
artificiais –, ainda que efêmeras, como que a vislumbrar a possibilidade de a
liberdade e a temperança poderem confrontar os eventuais laivos de desesperança
que venham a se instalar na alma.
A atmosfera contemplativa,
entrecortada por certa quietude, desolação e a alguma ameaça, vai em linha com
as nuances de “uma vida não tão rica”, dominada por uma sensibilidade aguçada
às sutilezas da existência, expondo o ente lírico a uma atitude de reserva, até
mesmo de ceticismo, em relação às hipóteses de felicidade.
É na complexidade dos
desenlaces da vida, entre mistérios e nostalgias, fugas e descobertas, embuços e
revelações, que se nos oferece um mundo de contrastes, colocando à prova a nossa
estabilidade psíquica, o poder de nossa vontade para empreender voos mais
altos, mais meritórios, a darem concretude às nossas mais acalentadas
aspirações, levando-nos a compreender melhor as razões dos volteios das gaivotas
sobre o mar.
J.A.R. – H.C.
Óssip Mandelstam
(1891-1938)
Казино
Я не поклонник радости предвзятой,
Подчас природа — серое пятно.
Мне, в опьяненье легком, суждено
Изведать краски жизни небогатой.
Играет ветер тучею косматой,
Ложится якорь на морское дно,
И, бездыханная, как полотно,
Душа висит над бездною проклятой.
Но я люблю на дюнах казино,
Широкий вид в туманное окно
И тонкий луч на скатерти измятой;
И, окружен водой зеленоватой,
Когда, как роза, в хрустале вино, –
Люблю следить за чайкою крылатой!
1912
Três dunas a partir
da minha janela
(Carita Henriksson:
artista australiana)
Cassino
Não gosto de prazer
premeditado.
O mundo, às vezes, é
um borrão escuro.
Eu, meio bêbado,
estou condenado
A ver as cores de um
viver obscuro.
O vento brinca e às
nuvens descabela.
A âncora cai no fundo
do oceano.
E inanimada, como
numa tela,
A alma pende sobre o
abismo insano.
Mas amo estar nas
dunas do cassino,
A larga vista da
janela baça,
Um fio de luz na
toalha que desbota,
A minha volta o mar
verde-citrino,
Vinho, como uma rosa,
em minha taça
E eu a seguir o voo
da gaivota.
1912
Referências:
Em Russo
Мандельштам, Осип. Казино. Disponível
neste
endereço. Acesso em: 10 abr. 2025.
Em Português
MANDELSTAM, Óssip.
Cassino. Tradução de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto (Seleção, tradução
e notas). Poesia da recusa. São Paulo, SP: Perspectiva, 2006. p. 119.
(Coleção ‘Signos’; v. 42)
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As traduções de Augusto de Campos são bem interessantes. E tens razão: é realmente na complexidade dos desenlaces da vida que se nos oferece um rico mundo de contrastes.
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