Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 13 de abril de 2025

João Cabral de Melo Neto - Psicanálise do açúcar

Num paralelo entre o processo de refinação do açúcar e o desenvolvimento psicanalítico do ser humano, o poeta alegoriza a nossa condição como se açúcar fôssemos, com suas camadas de complexidades e de contradições, sendo que devemos passar por um processo de acrisolamento para que possamos explorar e compreender os recessos mais profundos de nossa psique.

 

Nada obstante, por mais que tenhamos sido expurgados e educados pela sociedade moderna, haja vista que invariavelmente nos submetemos a esse simbólico processo de “industrialização”, sempre persiste algo de primitivo em cada um de nós, próximo do estado de natureza, de regresso às raízes, de mantença da pureza original – como o “barrento da pré-infância”.

 

J.A.R. – H.C.

 

João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)

 

Psicanálise do açúcar

 

O açúcar cristal, ou açúcar de usina,

mostra a mais instável das brancuras;

quem do Recife sabe direito o quanto,

e o pouco desse quanto, que ela dura.

Sabe o mínimo do pouco que o cristal

se estabiliza cristal sobre o açúcar,

por cima do fundo antigo, de mascavo,

do mascavo barrento que se incuba;

e sabe que tudo pode romper o mínimo

em que o cristal é capaz de censura:

pois o tal fundo mascavo logo aflora

quer inverno ou verão mele o açúcar.

 

Só os banguês que ainda purgam ainda

o açúcar bruto com barro, de mistura;

a usina já não o purga: da infância,

não de depois de adulto, ela o educa;

em enfermarias, com vácuos e turbinas,

em mãos de metal de gente indústria,

a usina o leva a sublimar em cristal

o pardo do xarope: não o purga, cura.

Mas como a cana se cria ainda hoje,

em mãos de barro de gente agricultura,

o barrento da pré-infância logo aflora,

quer inverno ou verão mele o açúcar.

 

Em: “Educação pela pedra” (1962-1965)

 

Colheita de Cana

(Cândido Portinari: pintor paulista)

 

Referência:

 

MELO NETO, João Cabral. Psicanálise do açúcar. In: __________. Da educação pela pedra à pedra do sono: antologia poética. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1986. p. 31.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário