Num paralelo entre o
processo de refinação do açúcar e o desenvolvimento psicanalítico do ser
humano, o poeta alegoriza a nossa condição como se açúcar fôssemos, com suas
camadas de complexidades e de contradições, sendo que devemos passar por um
processo de acrisolamento para que possamos explorar e compreender os recessos mais
profundos de nossa psique.
Nada obstante, por
mais que tenhamos sido expurgados e educados pela sociedade moderna, haja vista
que invariavelmente nos submetemos a esse simbólico processo de “industrialização”,
sempre persiste algo de primitivo em cada um de nós, próximo do estado de
natureza, de regresso às raízes, de mantença da pureza original – como o “barrento
da pré-infância”.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo
Neto
(1920-1999)
Psicanálise do açúcar
O açúcar cristal, ou
açúcar de usina,
mostra a mais
instável das brancuras;
quem do Recife sabe
direito o quanto,
e o pouco desse
quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do
pouco que o cristal
se estabiliza cristal
sobre o açúcar,
por cima do fundo
antigo, de mascavo,
do mascavo barrento
que se incuba;
e sabe que tudo pode
romper o mínimo
em que o cristal é
capaz de censura:
pois o tal fundo
mascavo logo aflora
quer inverno ou verão
mele o açúcar.
Só os banguês que
ainda purgam ainda
o açúcar bruto com
barro, de mistura;
a usina já não o
purga: da infância,
não de depois de
adulto, ela o educa;
em enfermarias, com
vácuos e turbinas,
em mãos de metal de
gente indústria,
a usina o leva a
sublimar em cristal
o pardo do xarope:
não o purga, cura.
Mas como a cana se
cria ainda hoje,
em mãos de barro de
gente agricultura,
o barrento da pré-infância
logo aflora,
quer inverno ou verão
mele o açúcar.
Em: “Educação pela
pedra” (1962-1965)
Colheita de Cana
(Cândido Portinari:
pintor paulista)
Referência:
MELO NETO, João Cabral. Psicanálise do açúcar. In: __________. Da educação pela pedra à pedra do sono: antologia poética. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1986. p. 31.
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