Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Manoel de Barros - Agora só espero a despalavra

Em versos que tecem loas aos mistérios e às possibilidades da pré-verbalidade, a um retorno às origens da expressão humana, em persecução a uma imediatez semântica ainda não contaminada pela significação vocabular, o poeta empenha-se em transcender a dimensão simbólica da linguagem, para desfrutar uma experiência direta da realidade, que não interponha seu filtro representacional entre a consciência e a pura vivência.

 

Se Barros agarra-se ao neologismo “despalavra” é porque pervaga por uma presumível desconstrução da linguagem, aspirando a uma ausência de palavras, a uma expressão humana primigênia, pré-verbal, com sons virginais, ainda sem “liga”, tais como os sons naturais – quiçá, no máximo, a abarcar algumas locuções onomatopaicas –, tudo para ir além do já dito em algum momento, do meramente conhecido.

 

Poder-se-ia também tomar o poema, a meu ver, como uma ode à poesia, enquanto forma de experimentação e de descoberta – à guisa de uma ideia inicial, ainda vaga e informe –, com potencial para evocar sensações e emoções, antes mesmo que se converta em algo interpretável pelas vias da racionalidade, transportando significados já agora plasmados em versos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manoel de Barros

(1916-2014)

 

Agora só espero a despalavra

 

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida

para o canto – desde os pássaros.

A palavra sem pronúncia, ágrafa.

Quero o som que ainda não deu liga.

Quero o som gotejante das violas de cocho.

A palavra que tenha um aroma ainda cego.

Até antes do murmúrio.

Que fosse nem um risco de voz.

Que só mostrasse a cintilância dos escuros.

A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma

imagem.

O antesmente verbal: a despalavra mesmo.

 

Homero, o poeta cego

(Caravaggio: pintor italiano)

 

Referência:

 

BARROS, Manoel de. Agora só espero a despalavra. In: __________. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1998. p. 16.

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