Em versos que tecem
loas aos mistérios e às possibilidades da pré-verbalidade, a um retorno às origens
da expressão humana, em persecução a uma imediatez semântica ainda não
contaminada pela significação vocabular, o poeta empenha-se em transcender a
dimensão simbólica da linguagem, para desfrutar uma experiência direta da realidade,
que não interponha seu filtro representacional entre a consciência e a pura
vivência.
Se Barros agarra-se ao
neologismo “despalavra” é porque pervaga por uma presumível desconstrução da
linguagem, aspirando a uma ausência de palavras, a uma expressão humana
primigênia, pré-verbal, com sons virginais, ainda sem “liga”, tais como os sons
naturais – quiçá, no máximo, a abarcar algumas locuções onomatopaicas –, tudo
para ir além do já dito em algum momento, do meramente conhecido.
Poder-se-ia também tomar o
poema, a meu ver, como uma ode à poesia, enquanto forma de
experimentação e de descoberta – à guisa de uma ideia inicial, ainda vaga e
informe –, com potencial para evocar sensações e emoções, antes mesmo que se
converta em algo interpretável pelas vias da racionalidade, transportando
significados já agora plasmados em versos.
J.A.R. – H.C.
Manoel de Barros
(1916-2014)
Agora só espero a
despalavra
Agora só espero a
despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde
os pássaros.
A palavra sem
pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda
não deu liga.
Quero o som gotejante
das violas de cocho.
A palavra que tenha
um aroma ainda cego.
Até antes do
murmúrio.
Que fosse nem um
risco de voz.
Que só mostrasse a
cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de
ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal:
a despalavra mesmo.
Homero, o poeta cego
(Caravaggio: pintor italiano)
Referência:
BARROS, Manoel de.
Agora só espero a despalavra. In: __________. Retrato do artista quando coisa.
Rio de Janeiro, RJ: Record, 1998. p. 16.
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