Entre preocupações
que lhe assaltam o espírito, centradas na fugacidade, na impermanência da vida,
o poeta questiona-se sobre o destino – depois que vier a falecer – de seus
objetos pessoais, presenças intangíveis, vínculos emocionais e experiências que
povoam o seu quarto de estudo, muito mais que simples haveres, senão partes
indissociáveis de sua história e identidade.
Ao observar os seus
próprios sapatos caminhando sob a chuva, como se tivessem vida própria, o
falante aprofunda a ideia da iminente desconexão com seus pertences, tornando
ainda mais viva a ideia da efemeridade de seus momentos terrenos, ante a inevitabilidade
da morte.
Essa condição humana,
de vulnerabilidade e de desamparo – enfatizada pelo vocativo no penúltimo verso
(“Ó senhor mendigo”) –, se compartilha, empática e compassivamente, dando margem
a que se o interprete como um apelo a que sempre busquemos algo de mais
significativo em nossas frágeis existências.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1953)
Pausa
Neste meu simples
quarto de estudo
penso muitas vezes
onde ides habitar depois de mim,
livros de meu agrado,
retratos familiares
ou de amigos, canetas e lápis
com que escrevo;
e o retrato de meu
pai onde irá órfão de mim?
Em que antiquário se
cobrirá de poeira
entre coisas
profanas?
Que destino tomará a
mesa em que escrevo, a cadeira
em que me sento
e em que doces
pessoas amadas repousaram?
Onde passarão a
habitar os gestos, os olhares,
o contato dos seres
que dormitam colados a essas coisas?
a mão em lis da que
numa tarde pousou no espaldar,
e ia tocar o poema e
o interrompeu em meio?
E os sons das músicas
queridas? e as vozes doces
que vinham dos sonhos
agitados
e que alta noite
penetravam pela janela aberta?
Tudo isto órfão de
mim sem tato e sem repouso,
irá procurar-me em
minha tumba
ou uivar pelos
caminhos ermos
ou vagar como
cadáveres de insetos?
Neste meu simples
quarto de estudo,
penso nos olhares dos
que me quiserem bem,
nas réstias que a
claridade me enviou,
nas sombras que me
envolveram de mistério,
na ventania que uma
noite veio do alto mar
com o véu de uma
desconhecida atirada nas águas.
Neste meu simples
quarto de estudo,
penso nas flores
murchas entre as páginas dos livros
ou nalguma lágrima
embebida nas letras,
nos traços que
sublinharam as frases mais amadas,
nos pequenos insetos
mortos sob minha lâmpada.
Todas estas coisas
órfãs de mim,
sem repouso e sem
teto,
ficarão como
sonâmbulos, como arlequins de luto?
Neste meu simples
quarto de estudo,
penso nas presenças
que moram atrás dos vidros
ou da penumbra
diáfana,
nos mais puros
estados d’alma
que pairam atrás das
sombras amigas
– mágoas que
existiram atrás de ciúmes,
desenganos que
surgiram atrás de grandes renúncias,
olhares que seguem
passos inquietos na noite.
Todas estas coisas
órfãs de mim, sem repouso e sem teto,
ficarão soluçando com
frio nos parques sem folhas?
Deste meu simples
quarto de estudo
vejo meus sapatos
caminhando na chuva.
Ó senhor mendigo,
prestai atenção para
não molhar os pés!
Homem lendo à luz
de uma luminária de
mesa
(Georg F. Kersting:
pintor alemão)
Referência:
LIMA, Jorge de. Pausa.
In: __________. Obra completa. Volume 1: poesia e ensaios. Organização
de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, RJ: Editora José Aguilar, 1958. p.
984-985. (Biblioteca Luso-brasileira; Série Brasileira)
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