Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Jorge de Lima - Pausa

Entre preocupações que lhe assaltam o espírito, centradas na fugacidade, na impermanência da vida, o poeta questiona-se sobre o destino – depois que vier a falecer – de seus objetos pessoais, presenças intangíveis, vínculos emocionais e experiências que povoam o seu quarto de estudo, muito mais que simples haveres, senão partes indissociáveis de sua história e identidade.

 

Ao observar os seus próprios sapatos caminhando sob a chuva, como se tivessem vida própria, o falante aprofunda a ideia da iminente desconexão com seus pertences, tornando ainda mais viva a ideia da efemeridade de seus momentos terrenos, ante a inevitabilidade da morte.

 

Essa condição humana, de vulnerabilidade e de desamparo – enfatizada pelo vocativo no penúltimo verso (“Ó senhor mendigo”) –, se compartilha, empática e compassivamente, dando margem a que se o interprete como um apelo a que sempre busquemos algo de mais significativo em nossas frágeis existências.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge de Lima

(1893-1953)

 

Pausa

 

Neste meu simples quarto de estudo

penso muitas vezes onde ides habitar depois de mim,

livros de meu agrado,

retratos familiares ou de amigos, canetas e lápis

com que escrevo;

e o retrato de meu pai onde irá órfão de mim?

Em que antiquário se cobrirá de poeira

entre coisas profanas?

Que destino tomará a mesa em que escrevo, a cadeira

em que me sento

e em que doces pessoas amadas repousaram?

Onde passarão a habitar os gestos, os olhares,

o contato dos seres que dormitam colados a essas coisas?

a mão em lis da que numa tarde pousou no espaldar,

e ia tocar o poema e o interrompeu em meio?

E os sons das músicas queridas? e as vozes doces

que vinham dos sonhos agitados

e que alta noite penetravam pela janela aberta?

Tudo isto órfão de mim sem tato e sem repouso,

irá procurar-me em minha tumba

ou uivar pelos caminhos ermos

ou vagar como cadáveres de insetos?

Neste meu simples quarto de estudo,

penso nos olhares dos que me quiserem bem,

nas réstias que a claridade me enviou,

nas sombras que me envolveram de mistério,

na ventania que uma noite veio do alto mar

com o véu de uma desconhecida atirada nas águas.

Neste meu simples quarto de estudo,

penso nas flores murchas entre as páginas dos livros

ou nalguma lágrima embebida nas letras,

nos traços que sublinharam as frases mais amadas,

nos pequenos insetos mortos sob minha lâmpada.

Todas estas coisas órfãs de mim,

sem repouso e sem teto,

ficarão como sonâmbulos, como arlequins de luto?

Neste meu simples quarto de estudo,

penso nas presenças que moram atrás dos vidros

ou da penumbra diáfana,

nos mais puros estados d’alma

que pairam atrás das sombras amigas

– mágoas que existiram atrás de ciúmes,

desenganos que surgiram atrás de grandes renúncias,

olhares que seguem passos inquietos na noite.

Todas estas coisas órfãs de mim, sem repouso e sem teto,

ficarão soluçando com frio nos parques sem folhas?

Deste meu simples quarto de estudo

vejo meus sapatos caminhando na chuva.

Ó senhor mendigo,

prestai atenção para não molhar os pés!

 

Homem lendo à luz

de uma luminária de mesa

(Georg F. Kersting: pintor alemão)

Referência:

 

LIMA, Jorge de. Pausa. In: __________. Obra completa. Volume 1: poesia e ensaios. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, RJ: Editora José Aguilar, 1958. p. 984-985. (Biblioteca Luso-brasileira; Série Brasileira)

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