Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Lindolf Bell - O poeta descobre-se no sebo

O poeta explicita-nos o que vai em sua mente enquanto passeia pela cidade, vindo a depara-se com um sebo de livros em ampla liquidação de seu estoque, em específico, de obras de poesia, entre as quais, uma de sua lavra, contendo dedicatória que o leva a refletir sobre um passado feliz, no qual eram fundamentais a amizade e a conexão humana.

 

O poeta se vê como um ser anacrônico, um vestígio de tempos idos – em que a palavra tinha um poder transformador –, num mundo que já não necessita desse “herdeiro dos deuses”. Se, logo em seguida, decide redigir o seu epitáfio, põe-se na ordem de interpretação que busca reconciliar-se com sua própria mortalidade, afirmando de algum modo o seu legado, mesmo a despeito de que, resignadamente, bem percebe que o seu mister perde relevância no mundo contemporâneo, ou ainda, deprecia-se enquanto forma de arte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lindolf Bell

(1938-1998)

 

O poeta descobre-se no sebo

 

O poeta ansioso, silencioso, vaidoso

como sempre,

caminha no centro da cidade.

 

Em busca de si mesmo, considera o poeta,

em busca de mim

e também do povo

que tanto precisa de mim.

 

Encontra o sebo:

no mesmo lugar

o sebo de sempre

no mesmo lugar.

O sebo que liquida livros de poesia

como sempre,

como sempre anuncia o cartaz

escrito a pincel atômico

que a luz consome.

 

Quer dizer: o sebo liquida duplamente

a poesia,

pensa o poeta

sem revolta

nem meta.

 

O poeta abre caminho entre os títulos.

Polvo de curiosidade.

Mil dedos

entre mil páginas.

E o poeta, herdeiro dos deuses,

hierático, enigmático como sempre

mas de suor frio na testa,

entre tantos livros empilhados

pilhou-se em flagrante

folheando o próprio livro.

 

Leu comovido a dedicatória.

O que sobra de um tempo feliz, pensa.

Esta íntima dedicatória, amiga, íntegra entrega:

ofereço estas palavras

para que a ponte da amizade

cresça perfeita entre nós

seres humanos.

 

O poeta deixa o sebo

e sente o ruidoso bafo da vida.

E neste instante começa a escrever

o próprio epitáfio.

 

Em: “O código das águas” (1984)

 

Retrato de um homem lendo um livro

(Parmigianino: pintor italiano)

 

Referência:

 

BELL, Lindolf. O poeta descobre-se no sebo. In: FARIA, Álvaro Alves de; MOISÉS, Carlos Felipe (Orgs.). Antologia poética da geração 60. 1. ed. São Paulo, SP: Nankin Editorial, set. 2000. p. 145-146.

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