O poeta explicita-nos
o que vai em sua mente enquanto passeia pela cidade, vindo a depara-se com um
sebo de livros em ampla liquidação de seu estoque, em específico, de obras de
poesia, entre as quais, uma de sua lavra, contendo dedicatória que o leva a
refletir sobre um passado feliz, no qual eram fundamentais a amizade e a conexão
humana.
O poeta se vê como um
ser anacrônico, um vestígio de tempos idos – em que a palavra tinha um poder
transformador –, num mundo que já não necessita desse “herdeiro dos deuses”. Se,
logo em seguida, decide redigir o seu epitáfio, põe-se na ordem de interpretação
que busca reconciliar-se com sua própria mortalidade, afirmando de algum modo o
seu legado, mesmo a despeito de que, resignadamente, bem percebe que o seu
mister perde relevância no mundo contemporâneo, ou ainda, deprecia-se enquanto
forma de arte.
J.A.R. – H.C.
Lindolf Bell
(1938-1998)
O poeta descobre-se
no sebo
O poeta ansioso,
silencioso, vaidoso
como sempre,
caminha no centro da
cidade.
Em busca de si mesmo,
considera o poeta,
em busca de mim
e também do povo
que tanto precisa de
mim.
Encontra o sebo:
no mesmo lugar
o sebo de sempre
no mesmo lugar.
O sebo que liquida
livros de poesia
como sempre,
como sempre anuncia o
cartaz
escrito a pincel atômico
que a luz consome.
Quer dizer: o sebo
liquida duplamente
a poesia,
pensa o poeta
sem revolta
nem meta.
O poeta abre caminho
entre os títulos.
Polvo de curiosidade.
Mil dedos
entre mil páginas.
E o poeta, herdeiro
dos deuses,
hierático, enigmático
como sempre
mas de suor frio na
testa,
entre tantos livros
empilhados
pilhou-se em
flagrante
folheando o próprio
livro.
Leu comovido a
dedicatória.
O que sobra de um
tempo feliz, pensa.
Esta íntima
dedicatória, amiga, íntegra entrega:
ofereço estas
palavras
para que a ponte da
amizade
cresça perfeita entre
nós
seres humanos.
O poeta deixa o sebo
e sente o ruidoso
bafo da vida.
E neste instante
começa a escrever
o próprio epitáfio.
Em: “O código das
águas” (1984)
Retrato de um homem
lendo um livro
(Parmigianino: pintor
italiano)
Referência:
BELL, Lindolf. O poeta descobre-se no sebo. In: FARIA, Álvaro Alves de; MOISÉS, Carlos Felipe (Orgs.). Antologia poética da geração 60. 1. ed. São Paulo, SP: Nankin Editorial, set. 2000. p. 145-146.
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