A par do indisfarçável
tema da fragilidade da vida em cotejo com a morte, este poema de Cecília pode
ser tomado, por igual, como um alerta maior para o quão débil e desprotegido é o
arranjo de nosso meio ambiente, tão necessitado de que cuidemos com mais
lucidez de seu aporte natural, das suas dádivas, dos seus frutos, respeitando a
vida em todas as suas formas, inclusive as mais pequenas e delicadas.
Na morte acidental de
uma borboleta pelas mãos da falante, a expressão de culpa, de remorso, de dor
pela perda de uma criatura tão bela e vulnerável. Resta-lhe – à falante, claro
está – a sensibilidade para rematar o seu colóquio com um ânimo de redenção, de
reconciliação, a evocar um sentido de perdão e transcendência: que o espírito
da borboleta ascenda a paraísos etéreos, enquanto ela mesma oferece-se como uma
“rosa desabrochada”, disposta a servir-lhe por toda a eternidade.
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Elegia a uma pequena
borboleta
Como chegavas do
casulo,
– inacabada seda viva!
–,
tuas antenas – fios
soltos
da trama de que eras
tecida,
e teus olhos, dois
grãos da noite
de onde o teu
mistério surgia,
como caíste sobre o
mundo
inábil, na manhã tão
clara,
sem mãe, sem guia,
sem conselho,
e rolavas por uma
escada
como papel, penugem,
poeira,
com mais sonho e
silêncio que asas,
minha mão tosca te
agarrou
com uma dura,
inocente culpa,
e é cinza de lua teu
corpo,
meus dedos, sua
sepultura.
Já desfeita e ainda
palpitante,
expiras sem noção
nenhuma.
Ó bordado do véu do
dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto
contigo:
leva o pranto que te
celebra,
no olho precário em
que te acabas,
meu remorso ajoelhado
leva!
Choro a tua forma
violada,
miraculosa, alva,
divina,
criatura de pólen, de
aragem,
diáfana pétala da
vida!
Choro ter pesado em
teu corpo,
que no estame não
pesaria.
Choro esta humana
insuficiência:
– a confusão dos
nossos olhos,
– o selvagem peso do
gesto,
– cegueira –
ignorância – remotos
instintos súbitos –
violências
que o sonho e a graça
prostram mortos.
Pudesse a etéreos
paraísos
ascender teu leve
fantasma,
e meu coração
penitente
ser a rosa
desabrochada
para servir-te mel e
aroma,
por toda a eternidade
escrava!
E as lágrimas que por
ti choro
fossem o orvalho
desses campos,
– os espelhos que
refletissem
– voo e silêncio – os
teus encantos,
com a ternura humilde
e o remorso
dos meus desacertos
humanos!
Em: “Retrato Natural”
(1949)
Borboleta morta nº 1
(Kevin Scott Miller: pintor
norte-americano)
Referência:
MEIRELES, Cecília.
Elegia a uma pequena borboleta. In: __________. Poesia completa. Vol. 1.
Apresentação de Alberto da Costa e Silva. Coordenação editorial André Seffrin.
1. ed., 1ª reimp. São Paulo, SP: Global, 2021. p. 609-610.
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