Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Cecília Meireles - Elegia a uma pequena borboleta

A par do indisfarçável tema da fragilidade da vida em cotejo com a morte, este poema de Cecília pode ser tomado, por igual, como um alerta maior para o quão débil e desprotegido é o arranjo de nosso meio ambiente, tão necessitado de que cuidemos com mais lucidez de seu aporte natural, das suas dádivas, dos seus frutos, respeitando a vida em todas as suas formas, inclusive as mais pequenas e delicadas.

 

Na morte acidental de uma borboleta pelas mãos da falante, a expressão de culpa, de remorso, de dor pela perda de uma criatura tão bela e vulnerável. Resta-lhe – à falante, claro está – a sensibilidade para rematar o seu colóquio com um ânimo de redenção, de reconciliação, a evocar um sentido de perdão e transcendência: que o espírito da borboleta ascenda a paraísos etéreos, enquanto ela mesma oferece-se como uma “rosa desabrochada”, disposta a servir-lhe por toda a eternidade.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cecília Meireles

(1901-1964)

 

Elegia a uma pequena borboleta

 

Como chegavas do casulo,

– inacabada seda viva! –,

tuas antenas – fios soltos

da trama de que eras tecida,

e teus olhos, dois grãos da noite

de onde o teu mistério surgia,

 

como caíste sobre o mundo

inábil, na manhã tão clara,

sem mãe, sem guia, sem conselho,

e rolavas por uma escada

como papel, penugem, poeira,

com mais sonho e silêncio que asas,

 

minha mão tosca te agarrou

com uma dura, inocente culpa,

e é cinza de lua teu corpo,

meus dedos, sua sepultura.

Já desfeita e ainda palpitante,

expiras sem noção nenhuma.

 

Ó bordado do véu do dia,

transparente anêmona aérea!

não leves meu rosto contigo:

leva o pranto que te celebra,

no olho precário em que te acabas,

meu remorso ajoelhado leva!

 

Choro a tua forma violada,

miraculosa, alva, divina,

criatura de pólen, de aragem,

diáfana pétala da vida!

Choro ter pesado em teu corpo,

que no estame não pesaria.

 

Choro esta humana insuficiência:

– a confusão dos nossos olhos,

– o selvagem peso do gesto,

– cegueira – ignorância – remotos

instintos súbitos – violências

que o sonho e a graça prostram mortos.

 

Pudesse a etéreos paraísos

ascender teu leve fantasma,

e meu coração penitente

ser a rosa desabrochada

para servir-te mel e aroma,

por toda a eternidade escrava!

 

E as lágrimas que por ti choro

fossem o orvalho desses campos,

– os espelhos que refletissem

– voo e silêncio – os teus encantos,

com a ternura humilde e o remorso

dos meus desacertos humanos!

 

Em: “Retrato Natural” (1949)

 

Borboleta morta nº 1

(Kevin Scott Miller: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

MEIRELES, Cecília. Elegia a uma pequena borboleta. In: __________. Poesia completa. Vol. 1. Apresentação de Alberto da Costa e Silva. Coordenação editorial André Seffrin. 1. ed., 1ª reimp. São Paulo, SP: Global, 2021. p. 609-610.

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