Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Rafaela Chacón Nardi - Poema

A poetisa cubana recorre a uma série de perguntas cruciais para poder entender as inquietações que a invadem, pejadas de emoções a fluírem como um rio em constante movimento, de modo silencioso e persistente: o fato é que as perguntas resultam sem respostas definitivas, pois que avançam para bem além de sua capacidade para desvelar as razões que as levam a aflorar em seu espírito, deixando-o desassossegado.

 

Essa jornada para identificar e entender as forças internas, imperceptíveis e inexoráveis, que estão em jogo, impulsoras de uma sensação profunda e molesta a se estender por todo o corpo, trilha caminhos por onde, a fio, se depreendem ominosas erupções ou cargas emocionais, talvez decursivas de um obsessionante diálogo interno que, ao fim e ao cabo, choca-se com o silêncio e com ele se funde, pois que descomedidamente autocrítico.

 

J.A.R. – H.C.

 

Rafaela Chacón Nardi

(1926-2001)

 

Poema

 

¿Qué río está creciendo

callada, tercamente,

qué río está corriendo

por mí?

¿Qué angustia penetrando

mis poros y mis venas?

¿Qué sombras cabalgando

mi sangre?

¿Qué voz con cruz de arena

golpea mis oídos

y se hunde callada

después?

¿Qué rosa turbia y nueva

me há nacido en los dedos?

¿Por qué?

 

Barcos à vela no Volga

(Konstantin I. Gorbatov: pintor russo)

 

Poema

 

Que rio está crescendo

calado, tenazmente,

que rio está correndo

em mim?

Que angústia penetrando

os meus poros e veias?

Que sombras cavalgando

meu sangue?

Que voz com cruz de areia

me golpeia os ouvidos

e se afunda calada

depois?

Que rosa turva e nova

me nasceu entre os dedos?

Por quê?

 

Referência:

 

NARDI, Rafaela Chacón. Poema / Poema. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (Seleção e Tradução). Grandes vozes líricas hispano-americanas. Edição bilíngue: espanhol x português. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1990. Em espanhol: p. 346; em português: p. 347. (‘Poesia de Todos os Tempos’)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Sophia de Mello Breyner Andresen - Musa

A voz lírica dirige-se à musa para que lhe ensine o canto – “venerável e antigo” – por todos compreendido, com o dom de invocar aquilo que há de essencial e primordial na natureza e na vida quotidiana – mitigadas, por conseguinte, eventuais arestas no jogo interativo do “self” com o seu entorno –, hábil para se chegar a um modo de expressão mais autêntico e liberto dos embargos que, no fundo da garganta, impedem-no de fluir pelo mundo afora.

 

A musa é, como se presume, a mentora para o processo criativo e fonte de inspiração para quem se dispõe a apreender o “locus” da beleza neste vasto mundo, extensível, claro está, ao domínio das humanas emoções – sempre reféns das contingências temporais, que tanto nos devoram quanto nos engendram a versatilidade do verbo poético.

 

J.A.R. – H.C.

 

Sophia de M. B. Andresen

(1919-2004)

 

Musa

 

Musa ensina-me o canto

Venerável e antigo

O canto para todos

Por todos entendido

 

Musa ensina-me o canto

O justo irmão das coisas

Incendiador da noite

E na tarde secreto

 

Musa ensina-me o canto

Em que eu mesma regresso

Sem demora e sem pressa

Tornada planta ou pedra

 

Ou tornada parede

Da casa primitiva

Ou tornada o murmúrio

Do mar que a cercava

 

(Eu me lembro do chão

De madeira lavada

E do seu perfume

Que atravessava)

 

Musa ensina-me o canto

Onde o mar respira

Coberto de brilhos

Musa ensina-me o canto

Da janela quadrada

E do quarto branco

 

Que eu possa dizer como

A tarde ali tocava

Na mesa e na porta

No espelho e no corpo

E como os rodeava

 

Pois o tempo me corta

O tempo me divide

O tempo me atravessa

E me separa viva

Do chão e da parede

Da casa primitiva

 

Musa ensina-me o canto

Venerável e antigo

para prender o brilho

Dessa manhã polida

Que poisava na duna

Docemente os seus dedos

E caiava as paredes

Da casa limpa e branca

 

Musa ensina-me o canto

Que me corta a garganta

 

Em: “Livro Sexto” (1962)

 

Musa

(Harisadhan Dey: artista indiano)

 

Referência:

 

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Musa. In: __________. Obra poética. Prefácio de Maria Andresen Sousa Tavares. Rio de Janeiro, RJ: Tinta-da-china Brasil, 2018. p. 442-443. (Coleção ‘Grandes Escritores Portugueses’)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Sandro Key-Åberg - Vejo um animal em cada homem

O poeta sueco traz à baila o tema da índole dual de cada indivíduo ou pessoa, a saber, um lado humano, decerto mais centrado no pensamento ou na intelecção racional, a coexistir com um outro, instintivo e animal, eis que espelhado em emoções, pulsões e desejos, do mesmo modo um intrínseco recheio de nossa natureza.


Sustenta o autor que quando as pessoas se conectam profundamente entre si, estão, de fato, se conectando com o seu lado mais animal, culminando, ao final, com a ideia de que é esse lado animal que nos une, enquanto que o lado humano é o que nos diferencia e nos distancia. Alguma dúvida?!


J.A.R. – H.C.

 

Sandro Key-Åberg

(1922-1991)

 

Jag ser ett djur i varje människa


Jag ser ett djur i varje människa

och det är djuret jag är rädd om.


Ja, inte bara ett men många,

var människa är ett djur som vimlar.


Jag känner i din mage kreaturens

suckar och grisarnas klagan.


Det kryper, lirkar under skinnet

av alla pyttesmå i sina sköldar.


En lärka sjunger i ditt öga,

en vessla spanar på din tunga.


Men det är lika fullt av djurskap i

den övre världen under tankens blånad.


Jag ser en räv som slinker genom tankegräset

där piggson fångar adjektiv i flykten,


och ett tankfullt koskap med gröna ögon

som betar i den friska känslogrönskan.


När människan bottnar i sig själv

går hon med tassar genom ängen


och flyter genom sina djupa sjöar

där gälar skänker henne syre.


När människan bottnar i varandra

är det i det djuriska hon bottnar.


Där är ett sorl av böl och pip

som alla är varandras röster.


Så varmt det blåser ifrån alla djuren!

I denna vind bor människan hos varandra.


Det är det djuriska som för oss samman.

Det är det mänskliga som skiljer oss.


Från: “På sin höjd” (1972)

 

Vaqueiro conduzindo o gado

(Jan Watson: artista norte-americano)

 

Vejo um animal em cada homem


Vejo um animal em cada homem

E é com esse animal que me preocupo.


Sim, não um apenas, mas muitos,

cada homem é um animal que pulula.


Sinto em seu ventre os suspiros

do gado e os gemidos dos cerdos.


Sob a pele, o rastejar e o esgueirar-se

de todas as criaturinhas em seus escudos.


Uma cotovia canta dentro de seus olhos,

em sua língua está à espreita uma doninha.


Mas há também uma copiosa animalidade no

mundo superior sob o azul da intelecção.


Vejo uma raposa a pisgar-se pela relva dos pensamentos,

onde uma fêmea de ouriço apanha adjetivos em voo,


e uma contemplativa vaca de olhos verdes

pastando no fresco verdor das emoções.


Quando o homem firma-se em si mesmo,

caminha pelos prados na ponta dos pés


e flutua por seus lagos profundos

onde as brânquias lhe fornecem oxigênio.

 

Quando os humanos criam vínculos entre si,

é no animal onde os seus liames se estribam.


Há um murmúrio de uivos e chilreios,

que são as vozes de uns e de outros.


Quanto calor sopra de todos os animais!

Sob esse vento, juntos os homens convivem.


É o instinto animal que nos une.

É o lado humano que nos separa.


Em: “No seu ápice” (1972)


Referência:


KEY-ÅBERG, Sandro. Jag ser ett djur i varje människa. In: __________. På sin höjd: dikter. Stockholm, SE: Albert Bonniers Förlag, 1972. s. 84.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Jalal ud-Din Rumi - [Eu sou Tu]

Rumi vislumbra uma conexão intrínseca entre todos os seres e fenômenos do universo e a unidade fundamental que subjaz em cada existência individual: somos “um” em essência, congregados ao divino, pois que transcendemos às aparentes diferenças por meio da presença naquilo que traduz criatividade, luz e beleza.

 

Encontramo-nos no vasto mar da sempiterna fluidez, ubíquos nas distintas formas de expressão – desde as minúsculas e imperceptíveis até as mais vastas e radiosas –, no ser e no não-ser que a tudo abarca, que é interlocução e silêncio, a denotar a axiomática inteligência que põe em movimento os fios desta trama que – no dizer do “poetinha” – não sabemos “bem ao certo onde vai dar”!

 

J.A.R. – H.C.

 

Jalal ud-Din Rumi

(1207-1273)

 

[Eu sou Tu]

 

Sou as partículas de pó à luz do sol,

sou o círculo solar.

Ao pó digo: “não te movas”,

e ao sol: “segue girando”.

 

Sou a névoa da manhã

e a brisa da tarde.

Sou o vento na copa das árvores

e as ondas contra o penhasco.

 

Sou o mastro, o leme, o timoneiro e a quilha

e o recife de coral em que naufragam as embarcações.

Sou a árvore em cujo galho tagarela o papagaio,

sou silêncio e pensamento, e também todas as vozes.

 

Sou o ar pleno que faz surgir a música da flauta,

a centelha da pedra, o brilho do metal.

Sou a vela acesa e a mariposa

girando louca ao seu redor.

Sou a rosa e o rouxinol

perdido em sua fragrância.

 

Sou todas as ordens de seres,

a galáxia girante,

a inteligência imutável,

o ímpeto e a deserção.

Sou o que é

e o que não é.

 

Tu, que conheces Jalal ud-Din,

Tu, o Um em tudo,

diz quem sou.

Diga: Eu sou

Tu.

 

Barco, perto de Veneza

(Edward William Cooke: pintor inglês)

 

Referência:

 

RUMI, Jalal ud-Din. [Eu sou Tu]. Tradução de José Jorge de Carvalho. In: __________. Poemas místicos: seleção de poemas do Divan de Shams de Tabriz. Seleção, tradução e introdução de José Jorge de Carvalho. 2. ed. 1. reimp. São Paulo, SP: Attar Editorial, 2010. p. 154-155.