Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de agosto de 2024

Thiago de Mello - O sonho da argila

Com título a se associar diretamente ao Gênesis 3:19, o poeta declina suas profundas lucubrações acerca da natureza das palavras, do sentido da vida e da íntima relação entre o ser humano e a natureza, sublinhando a importância de se encontrar significado no simples e no autêntico, ou mesmo de se valorizar a introspecção e a conexão emocional em um mundo obcecado por grandeza e domínio.

 

A verdadeira sabedoria pode ser encontrada em meio à gente humilde, como os obreiros que trabalham a terra, também repletos de sonhos que afloram da humana “argila” de que compostos – como o próprio falante –, que se expressam em palavras simples e autênticas vindas do coração, pois que, do contrário, vazias de significado, sendo preferível o silêncio.

 

J.A.R. – H.C.

 

Thiago de Mello

(1926-2022)

 

O sonho da argila

 

O vocábulo puro, em que me amparo,

esquiva-se a meu jugo; e raro canto.

Que a palavra da boca é sempre inútil

se o sopro não lhe vem do coração.

 

Mudo, contemplo os valerosos feitos

de quem funda caminhos sobre os mares

e edifica cidades e ergue torres

de cujo topo logre dominar

o mundo inteiro – e ver que o mundo é pouco.

 

Antes os que, cegos, trabalham a terra,

sorvendo-lhe os tesouros mais esconsos,

sem assombro, no convívio dos bois,

com eles aprendendo a ser humildes,

e dormem, vinda a noite, sossegados,

– permaneço calado, e todavia

algo em mim lhes inveja esse dormir.

 

Não me pranteio por saber-me turvo

ou por não me caber a paz dos brutos.

Sei que morro amanhã, mas não me louvo

a sóbria face que disfarça o medo.

 

Move-me ao canto ver que a sombra cresce

dentro de mim, enquanto um sol avaro

esplende oculto – em céus só vislumbrados

quando a argila, grotesca e ousada, sonha.

 

E ver o inútil dessa argila em sonho,

mais que mover-me ao canto, me comove.

 

A Criação do Homem

(Manasseh Johnson: artista norte-americano)

 

Referência:

 

MELLO, Thiago de. O sonho da argila. In: BANDEIRA, Manuel (Ed.). Apresentação da poesia brasileira. Posfácio de Otto Maria Carpeaux. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2009. p. 451-452.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Thomas Merton - Em silêncio

Num mundo carregado por ruídos e distrações, Merton nos exorta a escutarmos e sermos conscientes de nossa própria existência, imergindo no silêncio, na quietude e na identidade das coisas que nos rodeiam, para que possamos escutar as vozes de muros e pedras que intentam reverberar os nossos próprios nomes, convidando-nos à contemplação.

 

Bem mais do que alguém é ou poderia vir a ser no futuro, diz-nos ele, o importante seria aceitar – e ser – o “Desconhecido” que estaria em cada um de nós e em todas as coisas: num entorno tão tumultuoso, como permanecer serenamente tranquilo para poder escutar a voz profunda, a se revelar por um fogo de essências e de significados, para além das aparências e de sôfregas expectativas?!

 

J.A.R. – H.C.

 

Thomas Merton

(1915-1968)

 

In silence

 

Be still

Listen to the stones of the wall.

Be silent, they try

To speak your

 

Name.

Listen

To the living walls.

Who are you?

Who

Are you? Whose

Silence are you?

 

Who (be quiet)

Are you (as these stones

Are quiet). Do not

Think of what you are

Still less of

What you may one day be.

Rather

Be what you are (but who?) be

The unthinkable one

You do not know.

 

O be still, while

You are still alive,

And all things live around you

Speaking (I do not hear)

To your own being.

Speaking by the Unknown

That is in you and in themselves.

 

“I will try, like them

To be my own silence:

And this is difficult. The whole

World is secretly on fire. The stones

Burn, even the stones

They burn me. How can a man be still or

Listen to all things burning? How can he dare

To sit with them when

All their silence

Is on fire?”

 

Silêncio

(Sandra Hansen: pintora norte-americana)

 

Em silêncio

 

Fica quieto,

Escuta as pedras do muro.

Mantém-te em silêncio, elas tentam

Pronunciar o teu

 

Nome.

Escuta

Os muros cheios de vida.

Quem és tu?

Quem

és tu? A quem pertence

o silêncio que tu és?

 

Quem (fica calado)

És tu (tal como estão caladas

Aquelas pedras). Não

Penses no que és,

Tampouco no que

podes vir a ser um dia.

Melhor ainda,

Sê o que és (mas quem?),

Sê o impensável

De que não tens conhecimento.

 

Oh fica quieto, enquanto

Ainda estás vivo,

E todas as coisas que vivem ao teu redor

Põem-se a falar (não as escuto)

A teu próprio ser.

Falam elas pelo Desconhecido

Que está em ti e nelas mesmas.

 

“Tentarei, como elas,

Ser o meu próprio silêncio:

E isso é difícil. O mundo inteiro

Está secretamente a arder. As pedras

Ardem, as pedras até mesmo

Me queimam. Como pode um homem manter-se

quieto ou

Escutar todas as coisas a arder? Como pode ousar

Fazer-lhes companhia, quando

Todo o silêncio delas

Está em chamas?”

 

Referência:

 

MERTON, Thomas. In silence. In: __________. The collected poems of Thomas Merton. 1st. publ., 6th. print. New York, NY: New Directions, 1977. p. 280-281.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Jean de La Fontaine - Invocação à Volúpia

Muitos se deixam levar pela voluptuosidade, sinônimo primeiro do prazer sensual e dos desejos sensoriais – força vital a afetar nossas existências da infância à morte –, numa busca irrefreável por prazer e satisfação: o empenho por glória e fama, por conquistas, por regalos à mesa, e, até mesmo, por beleza nos elementos da natureza ou das artes são outros tantos veios, mencionados pelo falante, a convergirem para o deleite dos sentidos.

 

Nessa esteira, a voz lírica faz do poema um convite à volúpia, para que ganhe espaço em seus dias, amplificando as suas inclinações pelos livros, pelo amor, pela música, pela diversão, pela vida urbana e rural, assim como por qualquer outra forma de prazer, tudo para enredar suas ações, aspirações e percepções num enlevo que se pretende longevo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jean de La Fontaine

(1621-1695)

(por Hyacinthe Rigaud: detalhe)

 

Invocation à la Volupté

 

O douce Volupté, sans qui, des notre enfance

Le vivre et le mourir nous deviendraient égaux;

Aimant universel de tous les animaux,

Que tu sais attirer avec violence!

Par toi tout se meut ici-bas.

C’est pour toi, c’est pour tes appas

Que nous courons après la peine;

Il n’est soldat ni capitaine

Ni ministre d’Etat, ni prince, ni sujet,

Qui ne t’ait pour unique objet.

Nous autres nourrissons, si, pour fruit de nos veilles,

Un bruit délicieux ne charmait nos oreilles,

Si nous ne nous sentions chatouillés de ce son,

Ferions-nous um mot de chanson?

Ce qu’on appelle gloire en termes magnifiques,

Ce qui servait de prix dans les Jeux Olympiques,

N’est que toi, proprement, divine Volupté.

Et le plaisir des sens n’est-il de rien compté?

Pourquoi sont faits les dons de Flore,

Le soleil couchant et l’aurore,

Pomone et ses mets délicats,

Bacchus, l’âme des bons repas,

Les forêts, les eaux, les prairies,

Mères des douces rêveries?

Pourquoi tant de beaux arts qui sont tous tes enfants?

Mais pourquoi les Chloris aux appas triomphants

Que pour maintenir ton commerce?

J’entends innocemment: sur son propre désir

Quelque rigueur que l’on exerce,

Encore y prend-on du plaisir.

 

Volupté, Volupté, qui fus jadis maîtresse

Du plus bel esprit de la Grèce,

Ne me dédaigne pas, viens-t’um loger chez moi;

Tu n’y seras pas sans emploi;

J’aime le jeu, l’amour, les livres, la musique,

La ville et la campagne, enfin tout; il n’est rien

Qui ne me soit souverain bien,

Jusqu’au sombre plaisir d’um coeur mélancolique.

Viens donc; et de ce bien, ô douce Volupté,

Veux-tu savoir au vrai la mesure certaine?

Il m’um faut au moins um siècle bien compté;

Car trente ans, ce n’est pas la peine.

 

A Sensualidade

(Pompeo Batoni: pintor italiano)

 

Invocação à Volúpia

 

Sem ti, doce Volúpia, o viver e o morrer

Teriam, desde o berço, idêntico valor:

De toda a criação, universal pendor,

Com que força fatal, tu consegues prender!

Tudo, por ti, aqui se passa.

Por tua causa e tua graça,

A duras penas todos vão:

Não há soldado, capitão,

Nem fidalgo, plebeu, nem Ministro de Estado,

Que em ti não tenha o olhar pregado

Das Musas na afeição, se, de serões nascido,

Um agradável som não nos encanta o ouvido,

E se ele não nos traz amena sensação,

Tentamos nós uma canção?

O que, pomposamente, é chamado de glória

E, nos jogos d’Olimpo, exalçava a vitória.

Precisamente, és tu. Volúpia divinal.

E seu preço não tem o prazer sensual?

E então por que os dons de Flora,

O pôr-do-sol, a linda Aurora,

Pomona e seus finos manjares,

Baco, razão dos bons jantares,

Florestas, fontes, pradarias,

Mães de fagueiras fantasias?

Belas artes, por quê? de quem és a nascente,

Por que tanta beldade, amável, atraente,

Se não pra vires, até nós, sempre morar?

Eis o meu parecer, por mais procure alguém

O seu desejo castigar,

Algum prazer inda lhe vem.

 

Ó Volúpia gentil, que, na Grécia de outrora,

De um pensador foste senhora,

Não me desprezes não: vem à minha morada,

Não ficarás sem fazer nada:

Amo os livros, o amor, música e diversão,

Cidade, campo, enfim; o mundo nada tem

Que não me seja enorme bem,

Mesmo o aflito prazer de um triste coração.

Vem, pois, e desse bem, ó Volúpia querida,

Queres então saber a medida acertada?

Pelo menos preciso uns cem anos de vida,

Pois trinta só é quase nada...

 

Referência:

 

LA FONTAINE, Jean de. Invocation à la volupté / Invocação à volúpia. Tradução de Cláudio Veiga. In: VEIGA, Cláudio (Organização, seleção e tradução). Antologia da poesia francesa: do século IX ao século XX. Edição bilíngue: francês x português. 2. ed. ampliada. Rio de Janeiro, RJ: Record; Salvador, BA: Secretaria da Cultura e do Turismo, 1999. Em francês: p. 116 e 118; em português: p. 117 e 119.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Octávio Mora - Dissolução no Corpo

A linguagem se funde ao silêncio, e os lábios, que costumavam dar voz às palavras, agora estão retornando ao alento, à pura respiração: a perda do gosto pelas palavras e a confissão de ser apenas uma imagem sugerem uma sensação de desapego do falante em relação à realidade e uma busca por formas de expressão que não incorram no meramente dispensável.

 

O tempo avança e baldados são os esforços para detê-lo: lembranças se esvaem e o que resta é uma sensação oca de recordações, de perda, mesmo diante de algo tão inamovível quanto a terra, à qual o ente lírico sente-se limitado em seu afã por renovação e crescimento, sua identidade a dissolver-se na vastidão do mundo natural, com o qual, de todo modo, pode entrar em comunhão, para sublimar-se a um estado que transcenda as precárias circunscrições do viver.

 

J.A.R. – H.C.

 

Octávio Mora

(1933-2012)

 

Dissolução no Corpo

 

Dissolve-se-me o rosto.

Os lábios, ao silêncio, de regresso,

ao hálito a linguagem:

não sinto o gosto

que tinham as palavras. E, confesso:

sou só imagem.

 

Perco a lembrança, oca,

de tudo que recordo. Posso estar

com a terra a meus pés

que será pouca

para tudo que ando ao arrastar

suas marés.

 

Sempre a terra consegue

adiante de todos os meus passos

estar: inamovível.

Passiva: entregue.

Sob os meus pés e longe dos meus braços:

em outro nível.

 

São seus rios meus rastos.

Deixo sobre seu rosto minha face

já sem identidade.

Busco outros pastos.

Preso a seus gestos ficará, quem nasce,

em liberdade.

 

Dissolve-se-me a voz.

Ao silêncio geral estou de volta:

com água pela testa

e os cegos nós

de quem, árvore, fica, se as mãos solta,

preso à floresta.

 

Corpo em decomposição

(Pedro Deczuta: artista brasileiro)

 

Referência:

 

MORA, Octávio. Dissolução no corpo. In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira. Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 211.