Alternando estrofes com
distintas quantidades de versos, com esquemas de rimas, por conseguinte,
entremeados, o poeta tece loas à Poesia – “Musa bela, terrível e sagrada / Imaculada
Deusa do condão” –, enquanto se desloca a algum destino, num comboio, por entre
os campos e montanhas, de um lado, e o mar do outro.
O ente lírico sente-se
atado a um fado, escravizado entre “coisas de escrever e de exprimir”, tangendo
a lira a essa “mágica senhora das paixões”, como se estivesse nas imediações
dos umbrais do sonho: “sentimentos, pressentimentos”, “ritmos, imagens e
emoções”, acabam por ingressar nesse compósito painel onírico transmutado em
palavras.
J.A.R. – H.C.
Miguel Torga
(1907-1995)
À Poesia
Vou de comboio...
Vou
Mecanizado e duro
como sou
Neste dia;
– E mesmo assim tu
vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes
ferros e palpitas
Dentro de mim,
Poesia!
Vão homens a meu lado
distraídos
Da sua condição de
almas penadas;
Vão outros à janela,
diluídos
Nas paisagens
passadas...
E porque hei-de ter
eu nos meus sentidos
As tuas formas
brancas e aladas?
Os campos,
imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos
às montanhas;
O mar protesta contra
não sei quê;
E eu, movido por ti,
por tuas manhas,
A sonhar em painel
que se não vê!
Porque me tocas?
Porque me destinas
Este cilício vivo de
cantar?
Porque hei-de eu
padecer e ter matinas
Sem querer acordar?
Porque há-de a tua
voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme
a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto
teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me
escravizei,
Incapaz de fugir ao
meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de
haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e
a crescer fiquei?
Tanto me apetecia
agora ser
Alguém que não
cantasse nem sentisse!
Alguém que visse
padecer,
E não visse...
Alguém que fosse pelo
dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a
cada hora
Sem saber o que
faz...
Alguém que não
tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever
e de exprimir...
Alguém que se
deitasse
No banco mais
comprido que vagasse,
E pudesse dormir...
Mas eu sei que não
posso.
Sei que sou todo
vosso,
Ritmos, imagens,
emoções!
Sei que serve quem
ama,
E que eu jurei amor à
minha dama,
À mágica senhora das
paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e
aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me
obriga a tua mão!
Em: “Odes” (1946)
Alegoria da Poesia e
da Música
(detalhe)
(Angelica Kauffmann:
pintora suíça)
Referência:
TORGA, Miguel. À poesia. In: NEJAR, Carlos (Org.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: a partir de Vitorino Nemésio. São Paulo, SP: Massao Ohno & Roswitha Kempf Eds., 1982. p. 51-52.
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