Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Miguel Torga - À Poesia

Alternando estrofes com distintas quantidades de versos, com esquemas de rimas, por conseguinte, entremeados, o poeta tece loas à Poesia – “Musa bela, terrível e sagrada / Imaculada Deusa do condão” –, enquanto se desloca a algum destino, num comboio, por entre os campos e montanhas, de um lado, e o mar do outro.

 

O ente lírico sente-se atado a um fado, escravizado entre “coisas de escrever e de exprimir”, tangendo a lira a essa “mágica senhora das paixões”, como se estivesse nas imediações dos umbrais do sonho: “sentimentos, pressentimentos”, “ritmos, imagens e emoções”, acabam por ingressar nesse compósito painel onírico transmutado em palavras.

 

J.A.R. – H.C.

 

Miguel Torga

(1907-1995)

 

À Poesia

 

Vou de comboio...

Vou

Mecanizado e duro como sou

Neste dia;

– E mesmo assim tu vens, tu me visitas!

Tu ranges nestes ferros e palpitas

Dentro de mim, Poesia!

 

Vão homens a meu lado distraídos

Da sua condição de almas penadas;

Vão outros à janela, diluídos

Nas paisagens passadas...

E porque hei-de ter eu nos meus sentidos

As tuas formas brancas e aladas?

 

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,

Vão de braços abertos às montanhas;

O mar protesta contra não sei quê;

E eu, movido por ti, por tuas manhas,

A sonhar em painel que se não vê!

 

Porque me tocas? Porque me destinas

Este cilício vivo de cantar?

Porque hei-de eu padecer e ter matinas

Sem querer acordar?

 

Porque há-de a tua voz chamar a estrela

Onde descansa e dorme a minha lira?

Que razão te dei eu

Para que a um gesto teu

A harmonia me fira?

 

Poeta sou e a ti me escravizei,

Incapaz de fugir ao meu destino.

Mas, se todo me dei,

Porque não há-de haver na tua lei

O lugar do menino

Que a fazer versos e a crescer fiquei?

 

Tanto me apetecia agora ser

Alguém que não cantasse nem sentisse!

Alguém que visse padecer,

E não visse...

 

Alguém que fosse pelo dia fora

Neutro como um rapaz

Que come e bebe a cada hora

Sem saber o que faz...

 

Alguém que não tivesse sentimentos,

Pressentimentos,

E coisas de escrever e de exprimir...

Alguém que se deitasse

No banco mais comprido que vagasse,

E pudesse dormir...

 

Mas eu sei que não posso.

Sei que sou todo vosso,

Ritmos, imagens, emoções!

Sei que serve quem ama,

E que eu jurei amor à minha dama,

À mágica senhora das paixões.

 

Musa bela, terrível e sagrada,

Imaculada Deusa do condão:

Aqui vou de longada;

Mas aqui estou, e aqui serás louvada,

Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

 

Em: “Odes” (1946)

 

Alegoria da Poesia e da Música

(detalhe)

(Angelica Kauffmann: pintora suíça)

 

Referência:

 

TORGA, Miguel. À poesia. In: NEJAR, Carlos (Org.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: a partir de Vitorino Nemésio. São Paulo, SP: Massao Ohno & Roswitha Kempf Eds., 1982. p. 51-52.

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