Eivado de uma
peculiar religiosidade, a voz lírica, neste poema, dá-nos conta de como se
processa o seu contato com o divino, íntimo nos amorosos diminutivos pelos
quais é tratada, poupada das tribulações e das adversidades do “mezzo del
cammin”, pois que Deus somente costuma se revelar nos pontos extremos desta
lida carregada de mistérios.
Mesmo os simples
eventos que na natureza ocorrem, externando o sagrado, trazem-lhe gozo ao
espírito, estremecendo-lhe a carne. A tais eventos, com frequência, opõem-se
outros tantos, descomedidos, violentos até, infundindo medo e terror, perante os
quais a falante, apavorada, opta por manter-se a distância: melhor desconhecer
os desígnios divinos!
J.A.R. – H.C.
Adélia Prado
(n. 1935)
O Pai
Deus não fala comigo
nem uma palavrinha
das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo
e, se o fizesse,
como um aborígine
coberto de amuletos
sacrificaria aos
estalidos da mata;
não me tirasse a vida
um tal terror.
A seus afagos não sei
como agradecer,
beija-flor que entra
na tenda,
flor que sob meus
olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis
sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito
estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha
me trata como filhinha.
De tempestades, só
mostra o começo e o fim.
Em: “Miserere” (2013)
Garotinha
(Adolphe Bouguereau:
pintor francês)
Referência:
PRADO, Adélia. O pai.
In: __________. Poesia reunida. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2015.
p. 470.
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