Borges nos diz que
celebramos os fins de ano como um “milagre”, ante a percepção de que mudamos
constantemente – tais quais “as gotas do rio de Heráclito” –, embora haja algo
em nós que sempre permaneça, “imóvel”, pois que às voltas com a missão de encontrar
aquilo a que se propôs, ao longo desse trânsito que é a vida.
O autor argentino sugere
que de pouco serve a medição do tempo tal como a realizamos; mesmo os processos
astronômicos seriam triviais em cotejo à incômoda sensação de que nossas vidas
fluem de modo implacável, vis-à-vis o nomeado pressentimento de que haveria alguma coisa duradoura no momento presente. O que seria?
Pode-se levantar a
hipótese de que esse elemento mais estável a que se refere o autor argentino seja
o que de mais individual há em cada um de nós, a identidade que nos singulariza
em relação a quaisquer outras pessoas, identidade essa que, sucumbindo à morte,
suscita o maior dos mistérios sob o que representaria esse nosso retorno às origens.
J.A.R. – H.C.
Jorge Luiz Borges
(1899-1986)
Final de Año
Ni el pormenor
simbólico
de reemplazar un tres
por un dos
ni esa metáfora
baldía
que convoca un lapso
que muere y otro que surge
ni el cumplimiento de
un proceso astronómico
aturden y socavan
la altiplanicie de
esta noche
y nos obligan a
esperar
las doce irreparables
campanadas.
La causa verdadera
es la sospecha
general y borrosa
del enigma del
Tiempo;
es el asombro ante el
milagro
de que a despecho de
infinitos azares,
de que a despecho de
que somos
las gotas del río de
Heráclito,
perdure algo en
nosotros:
inmóvil,
algo que no encontró
lo que buscaba.
En: “Fervor de Buenos
Aires” (1923)
A Passagem do Tempo
(Sushe Felix: pintora
norte-americana)
Fim de Ano
Nem o pormenor
simbólico
de substituir um dois
por um três (*)
nem essa ociosa
metáfora
que convoca um lapso
que morre e outro que surge
nem o cumprimento de
um processo astronômico
atordoam e minam
o altiplano desta
noite
e nos obrigam a
esperar
as doze irreparáveis
badaladas.
A verdadeira causa
é a suspeita geral e indistinta
do enigma do Tempo;
é o assombro ante o
milagre
de que a despeito de
infinitos acasos,
de que a despeito de
que somos
as gotas do rio de
Heráclito,
perdure algo em nós:
imóvel,
algo que não
encontrou o que buscava.
Em: “Fervor de Buenos
Aires” (1923)
Nota:
(*) Borges alude à
mudança de ano, de 1922 a 1923, momento em que redigido o poema.
Referência:
BORGES, Jorge Luis.
Final de año. In: __________. Obra poética, 1923-1977. 2. ed. Madrid
(ES): Alianza Tres; Buenos Aires (AR): Emecé, 1981. p. 43.
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