Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Carlos Drummond de Andrade - O ano passado

Apesar da contagem numérica alusiva a um novo ano, quase nada justifica o qualitativo “novo” para o ano entrante, pois habitualmente continuamos enredados nas mesmas rotinas do ano cessante, junto às mesmas pessoas, coisas e lugares, justificando a presença ostensiva de um “repetidíssimo ano passado” – isto porque, também, o passado se mantém registrado em nossas memórias.

 

Nada é tão simples quanto “evacuar” os dejetos em um vaso sanitário, pois mesmo aquilo de que pretendemos conscientemente nos desfazer, para desafogar a mente e o espírito, necessita de um deliberado esforço de sublimação, para que deixemos de sepultar reiteradamente “os mortos de ontem”, cedendo espaço para um porvir com muito menos apegos a incidentes de menor importância.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

O ano passado

 

O ano passado não passou,

continua incessantemente.

Em vão marco novos encontros.

Todos são encontros passados.

 

As ruas, sempre do ano passado,

e as pessoas, também as mesmas,

com iguais gestos e falas.

O céu tem exatamente

sabidos tons de amanhecer,

de sol pleno, de descambar

como no repetidíssimo ano passado.

 

Embora sepultos, os mortos do ano passado

sepultam-se todos os dias.

Escuto os medos, conto as libélulas,

mastigo o pão do ano passado.

 

E será sempre assim daqui por diante.

Não consigo evacuar

o ano passado.

 

Em: “Corpo” (1984)

 

Fim do ano

(Diego Scursatone: artista italiano)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. O ano passado. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 74-75.



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