Apesar da contagem numérica
alusiva a um novo ano, quase nada justifica o qualitativo “novo” para o ano
entrante, pois habitualmente continuamos enredados nas mesmas rotinas do ano
cessante, junto às mesmas pessoas, coisas e lugares, justificando a presença ostensiva
de um “repetidíssimo ano passado” – isto porque, também, o passado se mantém
registrado em nossas memórias.
Nada é tão simples
quanto “evacuar” os dejetos em um vaso sanitário, pois mesmo aquilo de que
pretendemos conscientemente nos desfazer, para desafogar a mente e o espírito,
necessita de um deliberado esforço de sublimação, para que deixemos de sepultar
reiteradamente “os mortos de ontem”, cedendo espaço para um porvir com muito
menos apegos a incidentes de menor importância.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
O ano passado
O ano passado não
passou,
continua
incessantemente.
Em vão marco novos
encontros.
Todos são encontros
passados.
As ruas, sempre do
ano passado,
e as pessoas, também
as mesmas,
com iguais gestos e
falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de
amanhecer,
de sol pleno, de
descambar
como no repetidíssimo
ano passado.
Embora sepultos, os
mortos do ano passado
sepultam-se todos os
dias.
Escuto os medos,
conto as libélulas,
mastigo o pão do ano
passado.
E será sempre assim
daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado.
Em: “Corpo” (1984)
Fim do ano
(Diego Scursatone: artista
italiano)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. O ano passado. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção
e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1.
ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 74-75.
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