Entre a lida de se
pôr a desenhar ou a escrever poemas que se pretendam perenes, desafiando a eternidade,
e o encetar passeios para apreender e se insinuar sobre o que se passa fora de
suas próprias “muralhas”, o poeta não está bem certo sobre qual seria a melhor
opção.
Nota-se que a
primeira alternativa diz respeito à manifestação da interioridade do ente lírico,
o expressar-se criativamente para revelar algo novo ao mundo, algo que lhe diga
respeito ou à sua relação com a realidade, à sua imaginação ou mesmo à sua
condição consciencial, experimentando talvez um estado de “flow”, de
concentração e de enlevo, assemelhado àqueles que foram objeto de estudo pelo
psicólogo croata Mihaly Csikszentmihalyi (1934-2021).
Quanto à segunda opção,
é a escolha dos “flâneurs”, do pousar o olhar de expectador sobre as coisas do
mundo (“cego”, contudo, ao “ler-se no espelho”), não exatamente um “encontro”
de reciprocidade e dialogismo, segundo a perspectiva de Martin Buber
(1878-1965), mas bem mais um contato de ordem social, para esquivar-se ao
alheamento, embora com algum potencial para trazer “insights” que sejam fecundos
à primeira alternativa.
J.A.R. – H.C.
Almada Negreiros
(1893-1970)
Momento de Poesia
Se me ponho a
trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão
atrasado
no que devo à
eternidade,
que começo a empurrar
pra diante o tempo
e empurro-o,
empurro-o à bruta
como empurra um
atrasado,
até que cansado me
julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à
ilusão da satisfação!
Em troca, se vou
passear por aí
sou tão inteligente a
ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o
que não me diz respeito,
sinto-me tão cheio do
que é fora de mim,
dou conselhos tão
bíblicos aos aflitos
de uma aflição que
não é minha,
dou-me tão
perfeitamente conta do que
se passa fora das
minhas muralhas
como sou cego ao
ler-me ao espelho,
que, sinceramente não
sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em
casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o
rei invisível de tudo o que não é meu.
Paisagem
(Fernand Léger:
artista francês)
Referência:
NEGREIROS, Almada. Momento de poesia. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Introdução, selecção e notas). Antologia da poesia portuguesa (séc. XII – séc. XX). v. II: sécs. XVII – XX. Porto. PT: Lello & Irmão, 1977. p. 1621.
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