Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Almada Negreiros - Momento de Poesia

Entre a lida de se pôr a desenhar ou a escrever poemas que se pretendam perenes, desafiando a eternidade, e o encetar passeios para apreender e se insinuar sobre o que se passa fora de suas próprias “muralhas”, o poeta não está bem certo sobre qual seria a melhor opção.

 

Nota-se que a primeira alternativa diz respeito à manifestação da interioridade do ente lírico, o expressar-se criativamente para revelar algo novo ao mundo, algo que lhe diga respeito ou à sua relação com a realidade, à sua imaginação ou mesmo à sua condição consciencial, experimentando talvez um estado de “flow”, de concentração e de enlevo, assemelhado àqueles que foram objeto de estudo pelo psicólogo croata Mihaly Csikszentmihalyi (1934-2021).

 

Quanto à segunda opção, é a escolha dos “flâneurs”, do pousar o olhar de expectador sobre as coisas do mundo (“cego”, contudo, ao “ler-se no espelho”), não exatamente um “encontro” de reciprocidade e dialogismo, segundo a perspectiva de Martin Buber (1878-1965), mas bem mais um contato de ordem social, para esquivar-se ao alheamento, embora com algum potencial para trazer “insights” que sejam fecundos à primeira alternativa.

 

J.A.R. – H.C.

 

Almada Negreiros

(1893-1970)

 

Momento de Poesia

 

Se me ponho a trabalhar

e escrevo ou desenho,

logo me sinto tão atrasado

no que devo à eternidade,

que começo a empurrar pra diante o tempo

e empurro-o, empurro-o à bruta

como empurra um atrasado,

até que cansado me julgo satisfeito;

e o efeito da fadiga

é muito igual à ilusão da satisfação!

Em troca, se vou passear por aí

sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,

compreendo tão bem o que não me diz respeito,

sinto-me tão cheio do que é fora de mim,

dou conselhos tão bíblicos aos aflitos

de uma aflição que não é minha,

dou-me tão perfeitamente conta do que

se passa fora das minhas muralhas

como sou cego ao ler-me ao espelho,

que, sinceramente não sei qual

seja melhor,

se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,

se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.

 

Paisagem

(Fernand Léger: artista francês)

 

Referência:

 

NEGREIROS, Almada. Momento de poesia. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Introdução, selecção e notas). Antologia da poesia portuguesa (séc. XII – séc. XX). v. II: sécs. XVII – XX. Porto. PT: Lello & Irmão, 1977. p. 1621.

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