De uma matéria inerte
e sem vida, num jardim imaginário, um seixo, tomado de encantamento, torna-se
pássaro canoro, cujo toada fomenta um reverdecer da vegetação, fazendo levitar
outros seixos, num ciclo natural assemelhado ao da flora ou mesmo ao da água,
nos quais fluxo e inércia se alternam para engendrar a beleza de um mundo em transformação.
Por trás de toda essa
efervescência mutacional, há os lábios da poetisa por toda parte, levando-nos a
crer que tudo não passe de uma metáfora para o ato de escrever, tomando-se, a
princípio, a palavra primordial, fazendo-a “confessar” sentidos, sinestesias, semânticas,
dinâmicas, conexões com outras palavras, gerando assim um conjunto pleno de
harmonia, feito o jardim do poema, que se oferece naturalmente ao deleite de
outros olhos, que o podem contemplar ou bem como um continuum de aridez, de
seixos superpostos e sem vida, ou bem como um compêndio de aprazíveis nuances
estéticas.
J.A.R. – H.C.
Ana Hatherly
(1929-2015)
No Jardim
Enquanto passeava no
jardim
olhei um seixo duro e
branco
e mergulhando os
olhos nos átomos ocultos
me encantava.
Tomei o seixo na mão
olhei-o de perto
e levando-o aos
lábios
louvava a rigidez
redonda do seu corpo.
Afastado dos meus
lábios porém
o seixo começa se
agitando
estremecendo vi-o
desdobrar-se
desmembrar-se
da minha mão
erguer-se e ir voando.
Poisado num ramo
começou cantando como
um melro
e a minha mão
estremecia agora na sua garganta.
O ramo começou
reverdecendo
abrindo em dedos
claros
e um botão de flor
apareceu
que era os meus
lábios
correndo sobre a
aragem.
Outro ramo reverdece
e outro
o jardim começa se
animando
começam bailando
lábios sobre a terra
e os seixos todos vão-se
erguendo aos poucos
até que os bichos
soltam a cabeça
e deixam cair os
olhos reluzentes.
Rolam no chão como
sementes
buscando a sombra
a concha a gruta
bagos plenos
correndo para a boca
dos bichos cegos
deslumbrados
pelo canto do melro
fulminados
até não serem mais
que um seixo
duro e branco
e imóvel.
Jardim Japonês
(Reeny Wells: pintora
norte-americana)
Referência:
HATHERLY, Ana. No jardim. In: __________. Poesia: 1958-1978. Prefácio de Lúcia Helena da Silva Pereira. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1980. p. 57-58. (Coleção ‘Círculo de Poesia’; n. 97)
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