Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Ana Hatherly - No Jardim

De uma matéria inerte e sem vida, num jardim imaginário, um seixo, tomado de encantamento, torna-se pássaro canoro, cujo toada fomenta um reverdecer da vegetação, fazendo levitar outros seixos, num ciclo natural assemelhado ao da flora ou mesmo ao da água, nos quais fluxo e inércia se alternam para engendrar a beleza de um mundo em transformação.

 

Por trás de toda essa efervescência mutacional, há os lábios da poetisa por toda parte, levando-nos a crer que tudo não passe de uma metáfora para o ato de escrever, tomando-se, a princípio, a palavra primordial, fazendo-a “confessar” sentidos, sinestesias, semânticas, dinâmicas, conexões com outras palavras, gerando assim um conjunto pleno de harmonia, feito o jardim do poema, que se oferece naturalmente ao deleite de outros olhos, que o podem contemplar ou bem como um continuum de aridez, de seixos superpostos e sem vida, ou bem como um compêndio de aprazíveis nuances estéticas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ana Hatherly

(1929-2015)

 

No Jardim

 

Enquanto passeava no jardim

olhei um seixo duro e branco

e mergulhando os olhos nos átomos ocultos

me encantava.

Tomei o seixo na mão

olhei-o de perto

e levando-o aos lábios

louvava a rigidez redonda do seu corpo.

Afastado dos meus lábios porém

o seixo começa se agitando

estremecendo vi-o desdobrar-se

desmembrar-se

da minha mão erguer-se e ir voando.

Poisado num ramo

começou cantando como um melro

e a minha mão estremecia agora na sua garganta.

O ramo começou reverdecendo

abrindo em dedos claros

e um botão de flor apareceu

que era os meus lábios

correndo sobre a aragem.

Outro ramo reverdece e outro

o jardim começa se animando

começam bailando lábios sobre a terra

e os seixos todos vão-se erguendo aos poucos

até que os bichos soltam a cabeça

e deixam cair os olhos reluzentes.

Rolam no chão como sementes

buscando a sombra

a concha a gruta

bagos plenos

correndo para a boca

dos bichos cegos

deslumbrados

pelo canto do melro fulminados

até não serem mais que um seixo

duro e branco

e imóvel.

 

Jardim Japonês

(Reeny Wells: pintora norte-americana)

 

Referência:

 

HATHERLY, Ana. No jardim. In: __________. Poesia: 1958-1978. Prefácio de Lúcia Helena da Silva Pereira. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1980. p. 57-58. (Coleção ‘Círculo de Poesia’; n. 97) 

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