Ao constatar que tantos
morrem de fome por falta de recursos financeiros, pode parecer até fútil
despender dinheiro comprando livros que, tantas vezes, mal serão lidos e,
depois, arrumados numa estante como se “inúteis” fossem. Contudo, é a “fome”
por informações e por ilustração que mantém a voz lírica em estado de constante
exposição aos apelos do mercado editorial, mesmo diante de um cenário de parcos
recursos.
Menos que valor de
troca – tente levá-los até um sebo de volumes usados, para ratificar o quanto
serão subavaliados em termos pecuniários! –, os livros apresentam valor de uso,
notoriamente de ordem instrucional – enquanto depositários, com certa
frequência, de um saber cientificamente construído –, bem assim simbólico, no
caso, obviamente relevante para um homem de ideias como Sena, haja vista que enredado
durante décadas na vida acadêmica.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Ode aos livros que
não posso comprar
Hoje, fiz uma lista
de livros,
e não tenho dinheiro
para os poder comprar.
É ridículo chorar
falta de dinheiro
para comprar livros
quando a tantos ele
falta para não morrerem de fome.
Mas também é certo
que eu vivo ainda pior
do que a minha vida
difícil,
para comprar alguns
livros
– sem eles, também eu
morreria de fome,
porque o excesso de
dificuldades na vida,
a conta, afinal
certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço,
os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de
ligar a mim profundamente,
através de quanto
sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados,
alguns outros, que se
lhes falasse,
destruiriam sem piedade,
às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu
vou pacientemente juntando,
para que se não perca
nas curvas da vida,
onde é tão fácil
perdê-las de vista, se a curva é mais rápida.
Não posso nem sei
esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve,
se morrerá de outra fome maior,
do tamanho das
esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um
sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a
unidade que uma presença destrói.
Por isso, preciso de
comprar alguns livros,
uns que ninguém lê,
outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me
fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo,
arrumá-lo, como inútil,
e sair de casa,
contado os tostões que me restam
a ver se chegam para
o carro eléctrico,
até outra porta.
Sem perturbações no estúdio
(Kim Jacobs: ilustradora
norte-americana)
Referência:
SENA, Jorge de. Ode
aos livros que não posso comprar. In: __________. 40 anos de servidão.
Lisboa, PT: Edições 70, 1989. p. 50.
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