Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 25 de julho de 2023

Jorge de Sena - Ode aos livros que não posso comprar

Ao constatar que tantos morrem de fome por falta de recursos financeiros, pode parecer até fútil despender dinheiro comprando livros que, tantas vezes, mal serão lidos e, depois, arrumados numa estante como se “inúteis” fossem. Contudo, é a “fome” por informações e por ilustração que mantém a voz lírica em estado de constante exposição aos apelos do mercado editorial, mesmo diante de um cenário de parcos recursos.

 

Menos que valor de troca – tente levá-los até um sebo de volumes usados, para ratificar o quanto serão subavaliados em termos pecuniários! –, os livros apresentam valor de uso, notoriamente de ordem instrucional – enquanto depositários, com certa frequência, de um saber cientificamente construído –, bem assim simbólico, no caso, obviamente relevante para um homem de ideias como Sena, haja vista que enredado durante décadas na vida acadêmica.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge de Sena

(1919-1978)

 

Ode aos livros que não posso comprar

 

Hoje, fiz uma lista de livros,

e não tenho dinheiro para os poder comprar.

 

É ridículo chorar falta de dinheiro

para comprar livros

quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

 

Mas também é certo que eu vivo ainda pior

do que a minha vida difícil,

para comprar alguns livros

– sem eles, também eu morreria de fome,

porque o excesso de dificuldades na vida,

a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,

os lamentos que ouço, os jornais que leio,

tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,

através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados,

alguns outros, que se lhes falasse,

destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,

quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,

para que se não perca nas curvas da vida,

onde é tão fácil perdê-las de vista, se a curva é mais rápida.

 

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,

nem de que, em breve, se morrerá de outra fome maior,

do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,

ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,

capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

 

Por isso, preciso de comprar alguns livros,

uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,

para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,

folheá-lo pensativo, arrumá-lo, como inútil,

e sair de casa, contado os tostões que me restam

a ver se chegam para o carro eléctrico,

até outra porta.

 

Sem perturbações no estúdio

(Kim Jacobs: ilustradora norte-americana)

 

Referência:

 

SENA, Jorge de. Ode aos livros que não posso comprar. In: __________. 40 anos de servidão. Lisboa, PT: Edições 70, 1989. p. 50.

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