Nestes versos de fina
ironia – não sem motivos, o poema pertence ao poemário “Glass, Irony and God”,
de 1995 –, a poetisa canadense sugere-nos que Deus, no momento mesmo em que
pretendia criar a justiça, enredou-se em uma outra tarefa, digamos assim, menos
nobre, qual seja, a criação de uma libélula, e parece ter ficado pasmado com o
poder dos desígnios próprios do inseto, bem menos imagináveis do que poderia dar
a entender a sua aparente fragilidade.
Se Deus é um inventor
distraído ou não, se as suas criações se revestem de perfectibilidade ou não, trata-se
de uma questão teológica. Mas o que Carson aparenta perfilhar é que a justiça
seria um valor criado pelas sociedades humanas, não por Deus – este muito mais
voltado a criar engenho e beleza, mesmo nas pequenas coisas.
J.A.R. – H.C.
Anne Carson
(n. 1950)
In the beginning
there were days set aside for various tasks.
On the day He was to
create justice
God got involved in
making a dragonfly
and lost track of
time.
It was about two
inches long
with turquoise dots
all down its back like Lauren Bacall.
God watched it bend
its tiny wire elbows
as it set about
cleaning the transparent case of its head.
The eye globes mounted
on the case
rotated this way and
that
as it polished every
angle.
Inside the case
which was glassy
black like the windows of a downtown bank
God could see the
machinery humming
and He watched the
hum
travel all the way
down turquoise dots to the end of the tail
and breathe off as
light.
Its black wings
vibrated in and out.
Libélula
(Sherry Shipley: pintora norte-americana)
A Justiça de Deus
No princípio, havia
dias reservados para as distintas tarefas.
No dia destinado a criar a justiça,
Deus se empenhou na
criação de uma libélula
e perdeu a noção do
tempo.
Tinha cerca de duas
polegadas de comprimento,
com pintas turquesa
por todo o dorso, como a Lauren Bacall.
Deus a viu dobrar
seus diminutos e afilados cotovelos
enquanto se punha a
limpar a envoltória transparente de
sua cabeça.
Os globos oculares, engastados
na envoltória,
giravam de um lado a
outro,
enquanto eram polidos por todos os ângulos.
No interior da
envoltória,
negra e vítrea como as janelas de um banco no centro comercial,
Deus podia ver a
maquinaria a zumbir
e Ele observou o
zumbido
percorrer toda a
trilha de pintas turquesa até o final da cauda
e exalar como luz.
Suas asas negras
vibravam para dentro e para fora.
Referência:
Carson, Anne. God’s justice.
In: Lehman, David; Brehm, John (Eds.). The Oxford book of american poetry.
9th print. New York, NY: Oxford University Press, 2006. p. 1069.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário