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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 30 de julho de 2023

Anne Carson - A Justiça de Deus

Nestes versos de fina ironia – não sem motivos, o poema pertence ao poemário “Glass, Irony and God”, de 1995 –, a poetisa canadense sugere-nos que Deus, no momento mesmo em que pretendia criar a justiça, enredou-se em uma outra tarefa, digamos assim, menos nobre, qual seja, a criação de uma libélula, e parece ter ficado pasmado com o poder dos desígnios próprios do inseto, bem menos imagináveis do que poderia dar a entender a sua aparente fragilidade.

 

Se Deus é um inventor distraído ou não, se as suas criações se revestem de perfectibilidade ou não, trata-se de uma questão teológica. Mas o que Carson aparenta perfilhar é que a justiça seria um valor criado pelas sociedades humanas, não por Deus – este muito mais voltado a criar engenho e beleza, mesmo nas pequenas coisas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Anne Carson

(n. 1950)

 

God’s Justice

 

In the beginning there were days set aside for various tasks.

On the day He was to create justice

God got involved in making a dragonfly

 

and lost track of time.

It was about two inches long

with turquoise dots all down its back like Lauren Bacall.

 

God watched it bend its tiny wire elbows

as it set about cleaning the transparent case of its head.

The eye globes mounted on the case

 

rotated this way and that

as it polished every angle.

Inside the case

 

which was glassy black like the windows of a downtown bank

God could see the machinery humming

and He watched the hum

 

travel all the way down turquoise dots to the end of the tail

and breathe off as light.

Its black wings vibrated in and out.

 

Libélula

(Sherry Shipley: pintora norte-americana)

 

A Justiça de Deus

 

No princípio, havia dias reservados para as distintas tarefas.

No dia destinado a criar a justiça,

Deus se empenhou na criação de uma libélula

 

e perdeu a noção do tempo.

Tinha cerca de duas polegadas de comprimento,

com pintas turquesa por todo o dorso, como a Lauren Bacall.

 

Deus a viu dobrar seus diminutos e afilados cotovelos

enquanto se punha a limpar a envoltória transparente de

sua cabeça.

Os globos oculares, engastados na envoltória,

 

giravam de um lado a outro,

enquanto eram polidos por todos os ângulos.

No interior da envoltória,

 

negra e vítrea como as janelas de um banco no centro comercial,

Deus podia ver a maquinaria a zumbir

e Ele observou o zumbido

 

percorrer toda a trilha de pintas turquesa até o final da cauda

e exalar como luz.

Suas asas negras vibravam para dentro e para fora.

 

Referência:

 

Carson, Anne. God’s justice. In: Lehman, David; Brehm, John (Eds.). The Oxford book of american poetry. 9th print. New York, NY: Oxford University Press, 2006. p. 1069.

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