Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Pablo Neruda - Não Existe Esquecer (Sonata)

Em nossa “residência” sobre a terra, tudo são memórias – e nem sempre felizes – do que nos sucedeu (ou aos outros que nos acompanham): elas repercutem de modo tão intenso, tão lancinante, que nos levam a conduzir-nos perante a vida como se fatos distantes ou pessoas mortas possuíssem o dom da presença, ostensivamente sob os nossos olhos.

 

O leitor poderia associar tal comentário às intercorrências havidas entre os personagens do clássico hispano-americano “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo (1917-1986): os relatos são massa pendente de um tempo pretérito, que teima em decantar-se no presente, para a qual nem mesmo a avidez do oblívio logra sufocá-la para as funduras das águas do Letes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pablo Neruda

(1904-1973)

 

No Hay Olvido (Sonata)

 

Si me preguntáis en dónde he estado

debo decir “Sucede”.

Debo de hablar del suelo que oscurecen las piedras,

del río que durando se destruye:

no sé sino las cosas que los pájaros pierden,

el mar dejado atrás, o mi hermana llorando.

Por qué tantas regiones, por qué un día

se junta con un día? Por qué una negra noche

se acumula en la boca? Por qué muertos?

 

Si me preguntáis de dónde vengo, tengo que conversar

com cosas rotas,

con utensilios demasiado amargos,

con grandes bestias a menudo podridas

y con mi acongojado corazón.

No son recuerdos los que se han cruzado

ni es la paloma amarillenta que duerme en el olvido,

sino caras con lágrimas,

dedos en la garganta,

y lo que se desploma de las hojas:

la oscuridad de un día transcurrido,

de un día alimentado con nuestra triste sangre.

 

He aquí violetas, golondrinas,

todo cuanto nos gusta y aparece

en las dulces tarjetas de larga cola

por donde se pasean el tiempo y la dulzura.

Pero no penetremos más allá de esos dientes,

no mordamos las cáscaras que el silencio acumula,

porque no sé qué contestar:

hay tantos muertos,

y tantos malecones que el sol rojo partía,

y tantas cabezas que golpean los buques,

y tantas manos que han encerrado besos,

y tantas cosas que quiero olvidar.

 

En: “Residencia en la Tierra” (1925–1931)

 

Lago do bosque ao crepúsculo

(Laura Iverson: pintora norte-americana)

 

Não Existe Esquecer (Sonata)

 

Se me perguntais onde estive

devo dizer “Ocorre”.

Devo falar do limo que escurece as pedras,

do rio que durando se destrói:

Nada sei além das coisas que os pássaros perderam,

o mar deixado atrás ou minha irmã chorando.

Por que tantas regiões, por que um dia

se junta a outro dia? Por que uma negra noite

se acumula na boca? Por que há mortos?

 

Se me perguntais de onde venho, terei que conversar

com coisas mortas,

com utensílios demasiado amargos,

com grandes bestas geralmente pútridas

e com o meu angustiado coração.

Não são lembranças daqueles que se foram

nem a pomba amarelecida que dorme no esquecimento.

Apenas rostos com lágrimas,

dedos na garganta

e o que se desmorona das folhas,

a obscuridade de um dia transcorrido,

de um dia alimentado com nosso triste sangue.

 

Eis aqui violetas, andorinhas,

tudo o que nos apraz e que aparece

nesses cartões-postais de cauda longa

por onde passeiam o tempo e a doçura.

Além desses dentes, porém, não penetremos,

nem mordamos as cascas que o silêncio acumula,

porque não sei que responder:

há tantos mortos

e tantos paredões que o rubro sol partia

e tantas cabeças batendo contra os barcos

e tantas mãos que encarceravam beijos

e tantas coisas que desejo esquecer.

 

Em: “Residência na Terra” (1925–1931)

 

Referência:

 

NERUDA, Pablo. No hay olvido (sonata) / Não existe esquecer (sonata). Tradução de Ivo Barroso. In: BARROSO, Ivo (Organização e Tradução). O torso e o gato. Prefácio de Antonio Houaiss. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1991. Em espanhol: p. 210 e 212; em português: p. 211 e 213.

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