O falante, neste
poema, provável portador de linfoma no sangue, narra o que ocorre em
determinado lapso de tempo, numa sala de espera de um hospital oncológico: sem nomear
explicitamente o mal de que se trata – “câncer” ou mesmo “neoplasia maligna” –,
antes, designando-o por “multiplicador aloprado”, a voz lírica bem retrata o
que se passa com os pacientes da espécie, de “horizonte curto” e “olhar no
vazio”.
Mesmo com todo o
avanço da ciência, promovido, em especial, pelo mapeamento completo do genoma
humano, o câncer ainda é uma das doenças de mais alta taxa de mortalidade, a
despeito das pesquisas sem fim levadas a efeito pelos grandes laboratórios em
todo o mundo.
Sobre o tema, poderia
sugerir uma leitura fantástica, qual seja, a obra “O imperador de todos os males:
uma biografia do câncer” (“The emperor of all maladies: a biography of cancer”),
do autor indo-americano Siddhartha Mukherjee, vencedora do Prêmio Pulitzer de
2011: mesclando historiografia, comentários a inúmeros estudos de caso e um prodigioso
compêndio dos mais relevantes contratempos nas pesquisas e tratamentos, suas
páginas capturam o leitor pelo modo particularmente envolvente de sua escrita,
atenta até mesmo a apoderar-se da beleza da poesia, mediante transcrições de pertinentes
excertos de poemas de autores tão diversos quanto Anna Akhmatova, W. H. Auden,
William Blake, T. S. Eliot, Audre Lorde, Shakespeare, Gertrude Stein, William Carlos
Williams, entre outros.
Que o calibre
ciclópico do livro – são algo mais de seiscentas páginas – não desanime aqueles
que tenham interesse na matéria. Ao final, não se deixará de reconhecer o quanto
de meritório comporta o tomo!
J.A.R. – H.C.
Izalco Sardenberg
(n. 1950)
Remissão
Sócio remido, réu
renitente, assim
o paciente,
impaciente (às vezes),
prontuário 2760434.
Corre em suas veias o
tal, o qual,
aquilo, o que se
multiplica
multiplicando-se, o
repartindo-se
em moto contínuo,
ator desarvorado.
Esta é a única e vera
religião
que circula no sangue
de
quem foi pego pra
Cristo.
Aqui usamos pulseira
verde
com nome e data de
nascimento.
Aqui sonhamos o
elixir
que nos tornará
iguais
aos mortais comuns,
os saudáveis mortais
(aqueles para quem a
morte
é ainda abstração).
Eis-nos nesta sala de
espera,
sentados e agradecidos
ao deus da crença ou
da ciência.
Alguns, talvez
resignados,
olham o vazio, outros
veem
um horizonte curto,
mas seu grito é
surdo.
Há os que chegam
sozinhos,
há os acompanhados.
Um homem forte
proclama,
em voz alta, que já
teve de tudo
e vai ganhar também esta
parada.
Alguém chora mansinho
(não é comum).
Um japonês traz o
envelope
do laboratório, ali
dentro um retrato
que nunca será
emoldurado.
Um senhor magro e
alto, de boina,
tem uma das faces
roída.
Senta-se quieto, mão
direita
na testa, focado em
sua sina.
Qual destino teve o
propósito
de gravar tão fero
ódio neste rosto?
Neste reino da
assepsia
fala-se uma língua
própria,
que aprendemos a habitar
no conta-gotas dos
dias,
das aplicações, dos
exames.
Remissão é uma
palavra
deste léxico, mas não
se trata da ação
de perdoar ou do
sentimento
de compaixão.
Aqui quer dizer o
intervalo entre
a cessação e o reinício
de algum
sintoma. Os
(sobre)viventes em remissão
comemoram, embora ali
adiante
o multiplicador
aloprado
possa estar à
espreita.
Mas, afinal, qualquer
existência
não é isso, um feixe de
luz
entre duas sombras?
Sala de espera de um
hospital
(Michael Salaman:
artista inglês)
Referência:
SARDENBERG, Izalco.
Remissão. Remissão. 1. ed. São Paulo, SP: Amar-Amaro, 2019. p. 75-77.
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