Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 20 de maio de 2023

Izalco Sardenberg - Remissão

O falante, neste poema, provável portador de linfoma no sangue, narra o que ocorre em determinado lapso de tempo, numa sala de espera de um hospital oncológico: sem nomear explicitamente o mal de que se trata – “câncer” ou mesmo “neoplasia maligna” –, antes, designando-o por “multiplicador aloprado”, a voz lírica bem retrata o que se passa com os pacientes da espécie, de “horizonte curto” e “olhar no vazio”.

 

Mesmo com todo o avanço da ciência, promovido, em especial, pelo mapeamento completo do genoma humano, o câncer ainda é uma das doenças de mais alta taxa de mortalidade, a despeito das pesquisas sem fim levadas a efeito pelos grandes laboratórios em todo o mundo.

 

Sobre o tema, poderia sugerir uma leitura fantástica, qual seja, a obra “O imperador de todos os males: uma biografia do câncer” (“The emperor of all maladies: a biography of cancer”), do autor indo-americano Siddhartha Mukherjee, vencedora do Prêmio Pulitzer de 2011: mesclando historiografia, comentários a inúmeros estudos de caso e um prodigioso compêndio dos mais relevantes contratempos nas pesquisas e tratamentos, suas páginas capturam o leitor pelo modo particularmente envolvente de sua escrita, atenta até mesmo a apoderar-se da beleza da poesia, mediante transcrições de pertinentes excertos de poemas de autores tão diversos quanto Anna Akhmatova, W. H. Auden, William Blake, T. S. Eliot, Audre Lorde, Shakespeare, Gertrude Stein, William Carlos Williams, entre outros.

 

Que o calibre ciclópico do livro – são algo mais de seiscentas páginas – não desanime aqueles que tenham interesse na matéria. Ao final, não se deixará de reconhecer o quanto de meritório comporta o tomo!

 

J.A.R. – H.C.

 

Izalco Sardenberg

(n. 1950)

 

Remissão

 

Sócio remido, réu renitente, assim

o paciente, impaciente (às vezes),

prontuário 2760434.

Corre em suas veias o tal, o qual,

aquilo, o que se multiplica

multiplicando-se, o repartindo-se

em moto contínuo,

ator desarvorado.

Esta é a única e vera religião

que circula no sangue de

quem foi pego pra Cristo.

Aqui usamos pulseira verde

com nome e data de nascimento.

Aqui sonhamos o elixir

que nos tornará iguais

aos mortais comuns,

os saudáveis mortais

(aqueles para quem a morte

é ainda abstração).

 

Eis-nos nesta sala de espera,

sentados e agradecidos

ao deus da crença ou da ciência.

Alguns, talvez resignados,

olham o vazio, outros veem

um horizonte curto,

mas seu grito é surdo.

Há os que chegam sozinhos,

há os acompanhados.

Um homem forte proclama,

em voz alta, que já teve de tudo

e vai ganhar também esta parada.

Alguém chora mansinho

(não é comum).

Um japonês traz o envelope

do laboratório, ali dentro um retrato

que nunca será emoldurado.

Um senhor magro e alto, de boina,

tem uma das faces roída.

Senta-se quieto, mão direita

na testa, focado em sua sina.

Qual destino teve o propósito

de gravar tão fero ódio neste rosto?

 

Neste reino da assepsia

fala-se uma língua própria,

que aprendemos a habitar

no conta-gotas dos dias,

das aplicações, dos exames.

Remissão é uma palavra

deste léxico, mas não se trata da ação

de perdoar ou do sentimento

de compaixão.

Aqui quer dizer o intervalo entre

a cessação e o reinício de algum

sintoma. Os (sobre)viventes em remissão

comemoram, embora ali adiante

o multiplicador aloprado

possa estar à espreita.

Mas, afinal, qualquer existência

não é isso, um feixe de luz

entre duas sombras?

 

Sala de espera de um hospital

(Michael Salaman: artista inglês)

 

Referência:

 

SARDENBERG, Izalco. Remissão. Remissão. 1. ed. São Paulo, SP: Amar-Amaro, 2019. p. 75-77.

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