Há sentimentos e palavras
que perpassam a pele por dentro, imagens e vozes que ecoam os umbrais da morte,
a própria poesia pela qual anela aquele que vem a despertar ao final da vida: os
versos do poeta tonificam as recordações atinentes a uma existência que se
aproxima desse “mistério subitâneo”, frente ao qual propósitos de redenção pela
via numerária já não fazem qualquer sentido.
Nesse ciclo de incompletude
é que percutem os versos derradeiros de Hölderlin (1770-1843), sobre a necessidade
de harmonia em nossas vidas: “Diversas são as linhas da vida, como sendas e lindes
de montanhas. O que somos aqui, um Deus pode completar ali com harmonias,
eterna recompensa e paz”. (*)
J.A.R. – H.C.
João Alphonsus
(1901-1944)
Em memória de um
qualquer
Terminou a vida. Mais
nada nem ninguém.
Mas esta voz
melodiosa de onde?
E este silêncio que pesa
sobre todos os fins.
Terminou a vida. A
vida ficou.
Pisa de leve, que a
terra vai florir feito uma benção.
Pisa com amor, porque
os mortos estão debaixo da terra.
Aos pares, aos
grupos, rilhando os dentes, tremendo de frio.
No lodo das chuvas,
na poeira das ruas. Pisa de leve.
De leve sim, com a
resolução do desespero.
Sei lá! Mesmo talvez
com cinismo. E um passo adiante.
O noctâmbulo que entra
de súbito numa rua sombria
Não sente mais frio
nem calor do que na rua iluminada.
Mas a alma pode se
confranger no mistério subitâneo.
Irmão da sombra,
essência da sombra. Um passo adiante.
O mistério banal que
nasce das esquinas escuras.
O sujeito pode querer
garantir os níqueis que tem no bolso.
Pode querer garantir
sua alma contra o pecado.
Pode assoviar
baixinho para romper o silêncio e a sombra.
Pode mesmo cantar
qualquer canção de infância.
Braços maternais que
o apertaram bastante.
E uma voz que vem de
longe, e uma voz que vem de longe.
Sem começo nem fim.
Terminou a vida.
26.07.1937
A viagem da vida:
velhice
(Thomas Cole: pintor
inglês)
Nota:
(*). Tradução livre do poema “An
Zimmern” (“A Zimmer”): “Die Linien des Lebens sind verschieden, / Wie Wege
sind, und wie der Berge Grenzen. / Was hier wir sind, kan dort ein Gott
ergänzen / Mit Harmonien und ewigem Lohn und Frieden”.
Referências
ALPHONSUS, João. Em
memória de um qualquer. In: BRAGA, Rubem. A poesia é necessária.
Organização de André Seffrin. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2015. p. 89-90.
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