Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 26 de maio de 2023

João Alphonsus - Em memória de um qualquer

Há sentimentos e palavras que perpassam a pele por dentro, imagens e vozes que ecoam os umbrais da morte, a própria poesia pela qual anela aquele que vem a despertar ao final da vida: os versos do poeta tonificam as recordações atinentes a uma existência que se aproxima desse “mistério subitâneo”, frente ao qual propósitos de redenção pela via numerária já não fazem qualquer sentido.

 

Nesse ciclo de incompletude é que percutem os versos derradeiros de Hölderlin (1770-1843), sobre a necessidade de harmonia em nossas vidas: “Diversas são as linhas da vida, como sendas e lindes de montanhas. O que somos aqui, um Deus pode completar ali com harmonias, eterna recompensa e paz”. (*)

 

J.A.R. – H.C.

 

João Alphonsus

(1901-1944)

 

Em memória de um qualquer

 

Terminou a vida. Mais nada nem ninguém.

Mas esta voz melodiosa de onde?

E este silêncio que pesa sobre todos os fins.

Terminou a vida. A vida ficou.

 

Pisa de leve, que a terra vai florir feito uma benção.

Pisa com amor, porque os mortos estão debaixo da terra.

Aos pares, aos grupos, rilhando os dentes, tremendo de frio.

No lodo das chuvas, na poeira das ruas. Pisa de leve.

 

De leve sim, com a resolução do desespero.

Sei lá! Mesmo talvez com cinismo. E um passo adiante.

O noctâmbulo que entra de súbito numa rua sombria

Não sente mais frio nem calor do que na rua iluminada.

Mas a alma pode se confranger no mistério subitâneo.

Irmão da sombra, essência da sombra. Um passo adiante.

 

O mistério banal que nasce das esquinas escuras.

O sujeito pode querer garantir os níqueis que tem no bolso.

Pode querer garantir sua alma contra o pecado.

Pode assoviar baixinho para romper o silêncio e a sombra.

Pode mesmo cantar qualquer canção de infância.

Braços maternais que o apertaram bastante.

E uma voz que vem de longe, e uma voz que vem de longe.

Sem começo nem fim.

Terminou a vida.

 

26.07.1937

 

A viagem da vida: velhice

(Thomas Cole: pintor inglês)

 

Nota:

 

(*). Tradução livre do poema “An Zimmern” (“A Zimmer”): “Die Linien des Lebens sind verschieden, / Wie Wege sind, und wie der Berge Grenzen. / Was hier wir sind, kan dort ein Gott ergänzen / Mit Harmonien und ewigem Lohn und Frieden”.

 

Referências

 

ALPHONSUS, João. Em memória de um qualquer. In: BRAGA, Rubem. A poesia é necessária. Organização de André Seffrin. 1. ed. São Paulo, SP: Global, 2015. p. 89-90.

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