Deste hino de Hölderlin,
aprecio particularmente certa passagem da quinta estrofe, onde aparecem versos
(3ª e 4ª linhas) que se alinham à ideia do livre-arbítrio: “no sempiterno pórtico
do Pai” (entenda-se, o “Éter”), há espaço para todos, ou melhor, uma casa onde cada
um pode vagar livremente, uma vez que o caminho não está previamente definido a
ninguém.
“Éter”, assim vinculado
ao existir humano, alimenta, ademais, um certo matiz teológico, como se uma
revelação fosse, muito embora, como bem o esclarece o tradutor José Paulo Paes –
em seu amplo escólio à obra em referência, intitulado “O regresso dos deuses:
uma introdução à poesia de Hölderlin” –, deva-se tratar o poema de uma forma suficientemente
diferenciada. Veja-se:
Em “Ao éter”, [Hölderlin]
nos dá a medida do que pretendia o “politeísmo da imaginação e da arte”
proposto no “Programa” de 1795. O éter, em grego aither, tem a acepção
de “céu” em Homero, de “ar” em Empédocles e de “o elemento divino da alma
humana” em Filóstrato; feito divindade alegórica, surge na Teogonia de Hesíodo
como um dos filhos da União entre o Ar e o Dia, juntamente com a Mãe-Terra e o
Mar. Trata-se, pois, não de um verdadeiro mito ligado ao sistema religioso arcaico,
e sim de uma elaboração filosófica, mais bem adequada, por isso mesmo, ao tipo
de “nova mitologia da razão” sonhada por Hölderlin. No romance Ardinghello,
de seu amigo Heinse, através de citações de Sófocles, Eurípides e Aristófanes,
o éter é identificado, como sopro vital, ao próprio Zeus ou Pai celeste. E é
nessa condição que ele aparece também no poema de Hölderlin: por achar-se
infuso em toda a criação, esta, vivificada por ele, busca naturalmente o céu, aquela
“pátria amável” pela qual o poeta anseia e cuja altitude lhe inspira o impulso
para cima a que estão ligados motivos e símbolos recorrentes em sua dicção,
como o dos Alpes e o da águia. A irmandade teogônica do Éter com o Mar não deixa
tampouco de transparecer no poema sob a forma da sedução da viagem, o chamado
das “lonjuras esfumaçadas” variada e repetidamente figurado na poesia de
Hölderlin como contraparte dialética da nostalgia da pátria ou de volta ao seu seio
ali não menos iterativa. (PAES, 1991, p. 29)
J.A.R. – H.C.
Friedrich Hölderlin
(1770-1843)
Treu und freundlich,
wie du, erzog der Gotter und Menschen
Keiner, o Vater
Aether! mich auf; noch ehe die Mutter
In die Arme mich nahm
und ihre Bruste mich trankten,
Fabtest du zartlich
mich an und gossest himmlischen Trank mir,
Mir den heiligen
Othem zuerst in den keimenden Busen.
Nicht von irdischer
Kost gedeihen einzig die Wesen,
Aber du nahrst sie
all mit deinem Nektar, o Vater!
Und es drangt sich
und rinnt aus deiner ewigen Fulle
Die beseelende Luft
durch alle Rohren des Lebens.
Darum lieben die
Wesen dich auch und ringen und streben
Unaufhorlich hinauf
nach dir in freudigem Wachstum.
Himmlischer! sucht
nicht dich mit ihren Augen die Pflanze,
Streckt nach dir die
schuchternen Arme der niedrige Strauch nicht?
Dab er dich finde,
zerbricht der gefangene Same die Hulse,
Dab er belebt von dir
in deiner Welle sich bade,
Schuttelt der Wald
den Schnee wie ein uberlastig Gewand ab.
Auch die Fische
kommen herauf und hupfen verlangend
Über die glanzende
Flache des Stroms, als begehrten auch diese
Aus der Wiege zu dir;
auch den edeln Tieren der Erde
Wird zum Fluge der
Schritt, wenn oft das gewaltige Sehnen,
Die geheime Liebe zu
dir, sie ergreift, sie hinaufzieht.
Stolz verachtet den
Boden das Rob, wie gebogener Stahl strebt
In die Hohe sein
Hals, mit der Hufe beruhrt es den Sand kaum.
Wie zum Scherze,
beruhrt der Fub der Hirsche den Grashalm,
Hupft, wie ein
Zephyr, uber den Bach, der reibend hinabschaumt,
Hin und wieder und
schweift kaum sichtbar durch die Gebusche.
Aber des Aethers
Lieblinge, sie, die glucklichen Vogel,
Wohnen und spielen
vergnugt in der ewigen Halle des Vaters!
Raums genug ist fur
alle. Der Pfad ist keinem bezeichnet.
Und es regen sich
frei im Hause die Groben und Kleinen.
Über dem Haupte
frohlocken sie mir, und es sehnt sich auch
mein Herz
Wunderbar zu ihnen
hinauf; wie die freundliche Heimat
Winkt es von oben
herab, und auf die Gipfel der Alpen
Mochte ich wandern
und rufen von da dem eilenden Adler,
Dab er, wie einst in
die Arme des Zeus den seligen Knaben,
Aus der
Gefangenschaft in des Aethers Halle mich trage.
Toricht treiben wir
uns umher; wie die irrende Rebe,
Wenn ihr Stab
gebricht, woran zum Himmel sie aufwachst,
Breiten wir uber dem
Boden uns aus und suchen und wandern
Durch die Zonen der
Erd, O Vater Aether! vergebens,
Denn es treibt uns
Lust, in deinen Garten zu wohnen,
In die Meersflut
werfen wir uns, in den freieren Ebnen
Uns zu sattigen, und
es umspielt die unendliche Woge
Unsern Kiel, es freut
sich das Herz an den Kraften des Meergotts.
Dennoch genugt ihm
nicht; denn der tiefere Ozean reizt uns,
Wo die leichtere
Welle sich regt – o wer doch an jene
Goldnen Kusten das
wandernde Schiff zu treiben vermochte!
Aber indes ich hinauf
in die dammernde Ferne mich sehne,
Wo du fremde Gestad
umfangst mit der blaulichen Woge,
Kommst du sauselnd
herab von des Fruchtbaums bluhenden Wipfeln,
Vater Aether! und
sanftigest selbst das strebende Herz mir,
Und ich lebe nun
gern, wie zuvor, mit den Blumen der Erde.
Flutuando no Éter
(Alicia Herrmann: pintora
norte-americana)
Ao Éter
Ninguém, entre os
homens e os deuses, foi-me tão fiel
E bom como o foste,
Pai Éter; antes já que minha mãe
Me tomasse nos braços
para aleitar-me em seu seio,
Tu me enlaçaste com
meiguice e me verteste no peito
Infante a poção do
céu e no ouvido o sacro sopro teu.
Não é só de alimento
terrestre que vivem os seres,
Mas és tu que os
nutres a todos com teu néctar, Pai!
De tua fonte
sempiterna corre e flui por todos
Os condutos da vida
teu ar vivificante.
Por isso os seres te
amam e forcejam para o alto,
Buscando-te o tempo
todo em ditoso crescimento.
Celeste! não te
procura a planta com seus olhos,
E o arbusto rasteiro
não te estende os braços tímidos?
Para encontrar-te é
que a semente reclusa rompe a casca;
Por ti vivificada, e
para banhar-se em tuas vagas,
É que o bosque sacode
de si, roupa excessiva, a neve.
Os peixes também
sobem à tona e saltam anelantes
Por sobre o espelho
do rio, como que fugindo
Do seu berço para ti;
os nobres animais terrestres
Amiúde ganham asas
quando a ânsia impetuosa,
O secreto amor por
ti, os impele para cima.
O soberbo corcel
desdenha o chão; aço em arco, busca
Com o pescoço as
alturas, mal toca a areia com os cascos.
Como a brincar, o pé
do gamo roça o talo de relva
E transpõe, zéfiro, o
riacho a espumejar impetuoso,
Saltando-o uma e
outra vez, visível a custo entre os arbustos.
Mas os favoritos do
Éter, os pássaros ditosos,
Vivem e brincam no
sempiterno pórtico do Pai!
Há lugar para todos.
De nenhum a senda está marcada.
Pequenos e grandes se
movem livres pela casa.
Alegra-me tê-los
sobre a cabeça, e o coração,
Num prodigioso anseio
voa até eles; pátria amável,
O Éter me chama lá do
alto, e aos cimos dos Alpes
Eu quisera subir para
gritar à águia apressada
Que, como outrora o
menino eleito aos braços de Zeus,
Me levasse do
cativeiro ao pórtico celeste.
Néscios, vagamos de
um para outro lado; como a vide
Errante que, sem
esteio, cresce no rumo do céu,
Alastramo-nos pelo
solo e, extraviados, em vão
Vagamos pelas zonas da
Terra, oh meu Pai Éter!
Anseios de morar no
teu jardim conosco vão.
Às ondas do mar nós
nos lançamos, em planícies mais livres
Fartamo-nos, e brinca
a infinda vaga com a nossa quilha
E se alegra o coração
com o poder do deus do mar.
Mas isso não basta,
oceano mais fundo nos seduz,
Onde a vaga se move
mais ligeira – oh! quem pudesse
Às costas de ouro
impelir o nosso barco errante!
Mas enquanto anseio
por essas lonjuras esfumadas,
Onde tua vaga azul
envolve as praias ignotas,
Murmuro, do alto das
árvores floridas do pomar,
Vens tu mesmo, Pai
Éter, aplacar-me o coração,
E, propenso como
outrora, vivo entre as flores da Terra.
Do Ciclo de “Diotima”
(1795-1798)
Referências:
PAES, José Paulo. O
regresso dos deuses: uma introdução à poesia de Hölderlin. In: HÖLDERLIN, Friedrich.
Poemas. Seleção, tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 1991. p. 11-54.
HÖLDERLIN, Friedrich.
An den aether / Ao éter. Tradução de José Paulo Paes. In: __________. Poemas.
Seleção, tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 1991. Em alemão: p. 62 e 64; em português: p. 63 e 65.
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