Na curva final da
estrada, onde as memórias calam fundo na alma, a voz lírica se reporta aos reflexos
de um relacionamento íntimo, encetado com alguém em andança numa “calçada” que
lhe era paralela, lhanos ambos no ânimo, mas abertos às vicissitudes do coração
– e completamente “distraídos de tudo em torno”.
Os versos fluem como se um “canto de cisne” fossem, no âmbito de um affaire amoroso (alguém poderia afirmar, à luz do que sugere o poema, tratar-se de algo bem mais profundo!), em que “palavras nuas” foram largadas ao longo da senda: na “tarde quase noite”, o que poderiam atinar os outros que, nessa rua, se encontram um tanto distantes das cercanias desse bem-querer?!
J.A.R. – H.C.
Dora Ferreira da
Silva
(1918-2006)
O reflexo que
fomos...
O reflexo que fomos
na calçada
lado a lado: um deus
e um quase nada
a modo de crianças
calmas.
Não sei se nos
olhamos
se roçamos nossas
palmas
ou afloramos um do
outro
a pele delicada e a
alma.
A inocência de
qualquer começo
do coração o
arremesso
a estranha sorte dos
que tentaram
reconhecer-se a fundo
distraídos de tudo em
torno.
Que sabem os outros
dessa rua
da tarde quase noite,
da lua
de alguma palavra ali
largada
nua?
Em: “Cartografia do
imaginário” (2003)
Reflexos do amor a
reluzir
(Bonnie Marie:
pintora norte-americana)
Referência:
FERREIRA DA SILVA,
Dora. O que reflexo que fomos... In: HENRIQUES NETO, Afonso (Seleção e
Prefácio). Roteiro da poesia brasileira: anos 70. 1. ed. São Paulo, SP:
Global, 2009. p. 18. (Coleção ‘Roteiro da poesia brasileira’; direção de Edla
van Steen)
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