Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 20 de março de 2023

Rumi - A abdicação de Ibrahim

A busca por Deus não no exercício do poder, mas numa perspectiva de ascensão mística, isto porque o poder, no mais das vezes, tem o condão de levar quem o exerce a imaginar-se a própria “divindade”: seria insensato, segundo a historieta apresentada por Rumi, ir à procura de Deus enquanto se está sentado num trono, tanto quanto o seria o rastreio de camelos no teto de um palácio.

 

A sede pelo poder político centra o foco, em seu exercício, nas vantagens de ordem pessoal, vale dizer, nas exterioridades atinentes à força e ao comando, conjugadas a prerrogativas de toda ordem. Mas a evolução espiritual parece trilhar outras sendas, contratantes até, porque pressupõe uma interiorização mais refinada, com o fito de fazer brilhar, para todos, uma luz com atributos divinos, nesta arcana jornada que é a vida.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jalal ud-Din Rumi

(1207-1273)

 

Ibrahim’s abdication

 

Once that noble Ibrahim, as he sat on his throne,

Heard a clamour and noise of cries on the roof,

Also heavy footsteps on the roof of his palace.

He said to himself, “Whose heavy feet are those?”

He shouted from his window, “Who goes there?

’Tis no man’s step; surely ’tis a fairy.” (1)

His guards, filled with confusion, bowed their heads,

Saying, “It is we who are going the rounds in search.”

He said, “What seek ye?” They said “Our camels”

He said, “Who ever searched for camels on a housetop?”

They said, “We follow thy example,

Who seekest union with God while sitting on a throne.”

This was all, and no man ever saw him again,

Just as fairies are invisible to men.

His substance was hid from men, though he was with them,

For what can men see save the outward aspect and dress?

As he was removed from the sight of friends and strangers,

His fame was noised abroad like that of the ’Anka. (2)

For the soul of every bird that reaches Mount Qaf (3)

Confers glory on the whole family of birds.

 

O príncipe árabe

(Rudolf Ernst: pintor austro-francês)

 

A abdicação de Ibrahim

 

Certa vez o nobre Ibrahim, sentado em seu trono,

Ouviu clamores e gritos estridentes no telhado,

Assim como passos pesados no teto de seu palácio.

Disse a si mesmo: “De quem são esses pesados pés?”

E logo gritou de sua janela: “Quem vai lá?

Não é um passo de homem; decerto é uma fada.”

Seus guardas, bastante confusos, inclinaram suas cabeças,

Dizendo: “Somos nós que estamos em ronda numa busca.”

Ao que ele indagou: “O que buscais?” Disseram eles:

“Nossos camelos.”

“E quem já terá procurado camelos no teto de uma casa?”,

replicou.

Os guardas redarguiram: “Seguimos o teu exemplo,

Que buscas a união com Deus, sentado em teu trono.”

Isso foi tudo, e nenhum homem jamais o viu de novo,

Como invisíveis são as fadas aos homens.

Sua essência manteve-se oculta aos homens, ainda que com

eles estivesse,

Pois o que os homens podem ver além do aspecto exterior

e do vestuário?

Como se distanciara da vista de amigos e de estranhos,

Sua fama se fez corrente no estrangeiro como a de Anka.

Pois a alma de cada pássaro que chega ao Monte Qaf

Confere glória a toda a família de pássaros.

 

Notas:

 

(1). Fairy: A referência, no original em persa, diz respeito a uma espécie de fada encantadora da religião mazdaica (pairika) – e do folclore iraniano;

 

(2). Anka: A fênix árabe, mencionada pelo profeta num hádice; posteriormente assimilada pelos iranianos como Simurgue;

 

(3). Qaf: Montanha mítica da cosmogonia iraniana nos confins do mundo, na realidade, situada na Cordilheira Elburz, ao norte do país, às proximidades do Mar Cáspio.

 

Referência:

 

RÚMÍ, Maulána Jalálu-’d-Dín Muhammad I. Ibrahim’s abdication. In: __________. The Masnavi: teachings of Rumi. 1st ed. Translated and abridged from Persian by E. H. Whinfield. Book Four. New York, NY: E. P. Dutton, 1975. p. 182-183.

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