O escritor e político
português alude nestes versos à ampla incursão pelo universo interior, levada a
efeito pelos heterônimos do poeta conterrâneo Fernando Pessoa: Pessoa, sozinho,
como diz Alegre, é toda uma literatura, dada a numerosidade dos poemas que
saíram de sua pena, a fértil imaginação, o verbalizar com sutileza os seus
pensamentos e intuições – e até mesmo aquilo que, no revolver do olhar, se
mostra contraintuitivo.
Essa viagem íntima,
aflorando em imagens variegadas, configura uma espécie de aventura – a de
“escreviver” –, em contraste às peripécias pelo oceano adentro, que séculos
antes os portugueses empreenderam por um globo terrestre em parte ainda
incógnito, objeto de loas imortais nos cantos da epopeia lusitana de Camões.
Nessa ordem de
coisas, pode-se bem compreender a derradeira linha do soneto: Pessoa, o “futuro
do passado”, expressão entre aspas porque arrebatada a um verso do próprio
poeta.
J.A.R. – H.C.
Manuel Alegre
(n. 1936)
Fernando Pessoa
Vem ver agora o meu
país que já
não tem Camões nem
índias para achar
só tem Pessoa e o
império que não há
sentado à mesa como
em alto mar.
A viagem que faz é só
por dentro
e escreviver-se a
única aventura.
No pensamento é que
lhe dá o vento
ele é sozinho uma
literatura.
Eis a vida vidinha
cega e surda
ditadura do não do só
do pouco.
Ser homem (diz
Pessoa) é ser-se louco.
Heterónimo de si na
hora absurda
viajando no sentir
escreve sentado.
E é Pessoa: “futuro
do passado”.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Referência:
ALEGRE, Manuel.
Fernando Pessoa. In: __________. Sonetos do obscuro quê. Lisboa, PT:
Publicações Dom Quixote, 1993. p. 33.
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