Boland não vê tantos
lastros clássicos na poesia irlandesa ou, se é que os apresenta, aparecem de
certa forma deslocados ou em falsos arremedos: daí porque ela se prende bem
mais à história e à mitologia de sua própria Irlanda natal, delas extraindo o
que seja possível para conferir à sua poesia um diálogo mais franco com o cotidiano,
sobretudo com o cotidiano feminino.
Veja, leitor, como os
versos deste poema dizem bem o que a autora percebe como viável na elaboração
de uma poesia que venha à tona como se “fosse música, como se fosse paz”: aqueles
lugares, momentos, situações, aparições, revelações, que de improviso nos
alcançam, são o mais inspirador de todos os mananciais, em cuja esteira, no
mais das vezes, se lavra a excelência da lírica.
J.A.R. – H.C.
Eavan Boland
(1944-2020)
Irish Poetry
for Michael Hartnett
We always knew there
was no Orpheus in Ireland.
No music stored at
the doors of hell.
No god to make it.
No wild beasts to
weep and lie down to it.
But I remember an
evening when the sky
was underworld-dark
at four,
when ice had seized
every part of the city
and we sat talking –
the air making a
wreath for our cups of tea.
And you began to speak
of our own gods.
Our heartbroken
pantheon.
No Attic light for
them and no Herodotus.
But thin rain and
dogfish and the stopgap
of the sharp cliffs
they spent their
winters on.
And the pitch-black
Atlantic night:
how the sound
of a bird’s wing in a
lost language sounded.
You made the noise
for me.
Made it again.
Until I could see the
flight of it: suddenly
the silvery lithe
rivers of the southwest
lay down in silence
and the savage acres
no one could predict
were all at ease,
soothed and quiet and
listening to you, as
I was. As if to music, as if to peace.
In: “Against Love
Poetry” (2001)
Orfeu
(Caravaggio: pintor
italiano)
Poesia Irlandesa
para Michael Hartnett
Sempre soubemos que
não havia Orfeu na Irlanda.
Nenhuma música
reservada às portas do inferno.
Nenhum deus para fazê-la.
Nenhuma besta
selvagem a chorar e a deitar-se com ela.
Mas lembro-me de um
entardecer em que o céu
estava negro-inferno
às quatro,
quando o gelo havia
tomado todas as partes da cidade
e nos sentamos a
falar –
o ar criando grinaldas
sobre nossas xícaras de chá.
E começaste a falar
de nossos próprios deuses.
Nosso desconsolado
panteão.
Nenhuma luz ática
para eles, nenhum Heródoto,
senão chuva fina, seláquios
e o quebra-galho
dos penhascos pontiagudos
nos quais passavam os
seus invernos.
E a noite atlântica,
negra como breu:
como o bater de asas
de um pássaro a ressoar
numa linguagem perdida.
Fizeste o ruído para
mim.
Fizeste-o novamente.
Até que pude ver seu
voo: de repente,
os ágeis e prateados
rios do sudoeste
recolheram-se em
silêncio
e os acres selvagens,
sem que ninguém pudesse prever,
estavam todos à
vontade, acalmados e tranquilos e
a te escutarem, tal como
eu. Como se fosse música,
como se fosse paz.
Em: “A Poesia Contra
o Amor” (2001)
Referência:
BOLAND, Eavan. Irish
poetry. In: BOLLER, Diane; SELBY, Don; YOST, Chryss (Eds.). Poetry daily:
366 poems from the world’s most popular poetry website. Rita Dove and Dana
Gioia: advisory editors. Naperville, IL: Sourcebooks, 2003. p. 88.
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