Começando por associar
a vida de um animal – no caso, uma vespa a bater no vidro da janela – a um fenômeno
natural – qual seja, uma gota de chuva –, Ammons logo avança numa sucessão de
perguntas sobre o efeito mitigador de uma vida reconfortada por coisas materiais,
num álacre êxtase, a alguma distância de eventuais considerações de ordem
racional.
Ao final, se pergunta
o que haverá de ocorrer com as pessoas quando depararem com o “invisível”, o “irreconhecível
pelos sentidos”, o “intangível”, o “incorpóreo”: “confusas”, certamente, diz o
poeta, diante dessa “implacável realidade, opaca como a morte”.
O lado invisível do
mundo parece-se então com a vidraça transparente contra a qual a vespa se
debate: longe de ponderarmos sobre a nossa mortalidade, sobre a possibilidade
real de nossos corpos deixarem de existir nalgum dia, imersos que estamos na
febre inclemente de rotineiras ocupações – embora ainda abertos, espera-se, a uma lídima
epifania por vir, cursada num domínio “sem energia e sem imagem”.
J.A.R. – H.C.
A. R. Ammons
(1926-2001)
Epiphany
Like a single drop of
rain,
the wasp strikes
the windowpane;
buzzes rapidly
away, disguising
error in urgent
business:
such is the
invisible, hard as
glass,
unrenderable by the
senses,
not known until
stricken by:
some talk that
there is safety in
the visible,
the definite, the
heard and felt,
pre-stressing the
rational and
calling out with
joy, like people far
from death:
how puzzled they will
be when
going headlong secure
in “things”
they strike the
intangible and break,
lost,
unaccustomed to
transparency, to
being without body,
energy
without image:
how they will be
dealt
hard realizations,
opaque as death.
Um lugar de memórias
(Jim Warren:
ilustrador norte-americano)
Epifania
Como um solitário
pingo de chuva,
a vespa bate
no vidro da janela;
zune rapidamente
para longe,
disfarçando
o erro nesse negócio
urgente:
assim é o
invisível, duro como
vidro,
irreconhecível pelos
sentidos,
desconhecido até que
atingido:
há quem diga que
há segurança no que
não se vê,
na exatidão, no que é
ouvido e sentido,
pré-esgotando a razão
e
bradando com alegria,
como as pessoas ainda
longe da morte:
quão confusas elas
ficarão quando
indo
precipitadamente, protegidas por “coisas”
elas baterem contra o
intangível e se
quebrarem, perdidas,
desacostumadas à
transparência, a
ficar sem corpo, sem
energia e
sem imagem:
como elas lidarão com
a
implacável realidade,
opaca como a morte.
Referência:
AMMONS, A. R. Epiphany / Epifania. Tradução de André Caramuru Aubert. In: Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. Curitiba (PR), n. 250, fev. 2021. Em inglês e em português: p. 45. Disponível neste endereço. Acesso em: 5 mar. 2023.
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