Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 24 de março de 2023

David Mourão-Ferreira - Canção, de madrugada

A voz lírica perscruta a madruga a fim de desvendar suas promessas de redenção “a quem se arrasta ou se procura”, embora reconheça, que, ao fim e ao cabo, o mais provável é que sobrevenham “garantias de ilusão” e a consequente caracterização de um “abismo de fracassos”: as “deusas solícitas” não se deixam apreender assim tão desembaraçadamente.

 

“Do sofrimento a noite cessa na indecisa madrugada” e, nos limiares do alvorecer, apagam-se os lumes dos candeeiros, a luz da lua se abranda, “deixando as almas menos nuas”, com a “promessa de folhagem e de vento”, de uma “nova canção”, de uma “outra vida”, capaz de levantar, “a quem sofreu”, um “sol de entre as ruínas”: da noite de promessas não cumpridas a uma manhã de reiteradas expectativas de ventura.

 

J.A.R. – H.C.

 

David Mourão-Ferreira

(1927-1996)

 

Canção, de madrugada

 

A Cecília Meireles

 

Escorrem de noite pelos prédios,

dissimuladas na humidade

– dissimulando elas o tédio

das longas noites da cidade –,

deusas solícitas que vão,

com sua etérea assinatura,

quase propor a redenção,

– de rua em rua, dar a mão

a quem se arrasta ou se procura.

 

Pobre de quem vem perguntando

à pedra esquiva das esquinas

a voz e a face dessa amante

de que não restam senão cinzas!

Pobre do outro a quem o gelo

daquele encontro tão malsão

nem conseguiu arrefecê-lo!

– Pobres de tantos, sem o selo

de garantia da ilusão!

 

Ó vidas presas por um fio,

junto ao abismo dos fracassos,

quem vos evita o fim sombrio

já desenhado em vossos passos?

– Com grandes túnicas violáceas,

as deusas erguem claras brisas:

nas avenidas e nas praças,

tremem as folhas das acácias,

vibram os peitos infelizes.

 

Até o frígido luar,

que de livor tingia as ruas,

se vai sumindo, devagar,

deixando as almas menos nuas...

Uma promessa de folhagem,

de vento e sol, as veste agora:

e, penetradas pela aragem,

as almas tímidas reagem

à madrugada que as enflora!

 

Súbito, a um gesto das deidades,

quebra-se o fúnebre luzeiro

das outras luas enforcadas

nos braços curvos dos candeeiros.

Já no crepúsculo se esfuma

a doentia sugestão,

– e as deusas tecem, com a bruma,

a nova luz que se avoluma

e é uma promessa ou uma canção.

 

Do sofrimento a noite cessa

na indecisa madrugada:

que ninguém peça a uma promessa

mais que a promessa que foi dada!

A quem sofreu, basta que a vida

levante um sol de entre as ruínas:

uma promessa doutra vida...

– Quanto aprendi!, nesta comprida

noite que tu, Canção, terminas.

 

Em: “A Tempestade de Verão” (1954)

 

Canção ao amanhecer

(Igor Iarovoi: artista russo)

 

Referência:

 

MOURÃO-FERREIRA, David. Canção, de madrugada. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, Ernesto Manuel Geraldes de (Eds.). Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3. ed., vol. I. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 93-94. (‘Círculo de Poesia’; nº 46)

Nenhum comentário:

Postar um comentário