A voz lírica perscruta
a madruga a fim de desvendar suas promessas de redenção “a quem se arrasta ou
se procura”, embora reconheça, que, ao fim e ao cabo, o mais provável é que
sobrevenham “garantias de ilusão” e a consequente caracterização de um “abismo
de fracassos”: as “deusas solícitas” não se deixam apreender assim tão desembaraçadamente.
“Do sofrimento a
noite cessa na indecisa madrugada” e, nos limiares do alvorecer, apagam-se os
lumes dos candeeiros, a luz da lua se abranda, “deixando as almas menos nuas”,
com a “promessa de folhagem e de vento”, de uma “nova canção”, de uma “outra
vida”, capaz de levantar, “a quem sofreu”, um “sol de entre as ruínas”: da
noite de promessas não cumpridas a uma manhã de reiteradas expectativas de ventura.
J.A.R. – H.C.
David Mourão-Ferreira
(1927-1996)
Canção, de madrugada
A Cecília Meireles
Escorrem de noite
pelos prédios,
dissimuladas na
humidade
– dissimulando elas o
tédio
das longas noites da
cidade –,
deusas solícitas que
vão,
com sua etérea
assinatura,
quase propor a
redenção,
– de rua em rua, dar
a mão
a quem se arrasta ou
se procura.
Pobre de quem vem
perguntando
à pedra esquiva das
esquinas
a voz e a face dessa
amante
de que não restam
senão cinzas!
Pobre do outro a quem
o gelo
daquele encontro tão
malsão
nem conseguiu
arrefecê-lo!
– Pobres de tantos,
sem o selo
de garantia da
ilusão!
Ó vidas presas por um
fio,
junto ao abismo dos
fracassos,
quem vos evita o fim
sombrio
já desenhado em
vossos passos?
– Com grandes túnicas
violáceas,
as deusas erguem
claras brisas:
nas avenidas e nas
praças,
tremem as folhas das
acácias,
vibram os peitos
infelizes.
Até o frígido luar,
que de livor tingia
as ruas,
se vai sumindo,
devagar,
deixando as almas
menos nuas...
Uma promessa de
folhagem,
de vento e sol, as
veste agora:
e, penetradas pela
aragem,
as almas tímidas
reagem
à madrugada que as
enflora!
Súbito, a um gesto
das deidades,
quebra-se o fúnebre
luzeiro
das outras luas
enforcadas
nos braços curvos dos
candeeiros.
Já no crepúsculo se
esfuma
a doentia sugestão,
– e as deusas tecem,
com a bruma,
a nova luz que se
avoluma
e é uma promessa ou
uma canção.
Do sofrimento a noite
cessa
na indecisa
madrugada:
que ninguém peça a
uma promessa
mais que a promessa
que foi dada!
A quem sofreu, basta
que a vida
levante um sol de
entre as ruínas:
uma promessa doutra
vida...
– Quanto aprendi!,
nesta comprida
noite que tu, Canção,
terminas.
Em: “A Tempestade de
Verão” (1954)
Canção ao amanhecer
(Igor Iarovoi: artista
russo)
Referência:
MOURÃO-FERREIRA, David.
Canção, de madrugada. In: MENÉRES, Maria Alberta; MELO E CASTRO, Ernesto Manuel
Geraldes de (Eds.). Antologia da novíssima poesia portuguesa. 3. ed.,
vol. I. Lisboa, PT: Moraes Editores, 1971. p. 93-94. (‘Círculo de Poesia’; nº
46)
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