Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 22 de março de 2023

João de Deus - O Dinheiro

Sobre a “força da grana”, diz o compositor Caetano Veloso, em “Sampa”, que tem o poder de erguer e destruir “coisas belas”. Na letra de “Brasil”, contudo, Cazuza enfatiza bem mais o lado nocivo, aludindo ao poder de corrupção detido pelo dinheiro, no mais das vezes, por trás de operações canhestras levadas a efeito por políticos desonestos: “Não me subornaram: será que é o meu fim?”

 

O pedagogo e poeta português João de Deus vai mais além: percebe o quanto as posses numerárias podem tornar falso qualquer relacionamento humano, mesmo os de pretenso afeto; idem, tornando corruptível o sistema de justiça, as bancas de avaliação (e até mesmo as de concursos públicos, poder-se-ia dizer), bem assim a burocracia estatal em suas interações com o cidadão comum.

 

Como arremate, um pensamento correlato ao tema, consignado pelo filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), em seu ensaio “Dos coches” (grifo meu):

 

A liberalidade não se justifica nos reis. Os particulares têm mais direito a ela, pois, a rigor, um rei nada possui de verdadeiramente seu e deve-se por inteiro aos outros. A administração não foi criada para o bem do administrador e sim para o do administrado. Não se cria um superior em vista de sua própria vantagem, mas em benefício do inferior. (MONTAIGNE, p. 230).

 

J.A.R. – H.C.

 

João de Deus

(1830-1896)

 

O Dinheiro

 

O dinheiro é tão bonito,

tão bonito, o maganão,

tem tanta graça, o maldito,

tem tanto chiste, o ladrão!...

O falar, fala de um modo...

todo ele, aquele todo...

E elas acham-no tão guapo!

Velhinha ou moça que o veja,

por mais esquiva que seja,

Tlim!

Papo.

 

E a cegueira da justiça

como ele a tira num ai!

Sem pegar nem com a pinça,

e só dizer-lhe: aí vai...

Operação melindrosa,

que não é lá qualquer coisa;

Catarata, tome conta!

Pois não faz mais do que isto,

diz-me um juiz que o tem visto:

Tlim!

Pronta.

 

Nessas espécies de exames

que a gente fez em rapaz,

são milagres aos enxames

o que aquele demo faz!

Sem saber nem patavina

da gramática latina,

quer-se a gente dali fora?

Vai ele com tais falinhas,

tais gaifonas, tais coisinhas...

Tlim!

Ora...

 

Aquela fisionomia

e lábia que o demo tem!

Mas numa secretaria

aí é que é vê-lo bem.

Quando ele de grande gala,

entra o ministro na sala,

aproveita a ocasião:

– Conhece este amigo antigo?

– Oh, meu tão antigo amigo!

Tlim!

Pois não.

 

O dinheiro fala mais alto

(Johan Andersson: pintora sueca)

 

Referências:

 

DEUS, João de. O dinheiro. In: ALMEIDA, Margarida Lopes de (Org.). Versos que eu digo. Rio de Janeiro: Edições Rudá, 1937. p. 67-69.

 

MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios: vol. 3. Tradução de Sérgio Milliet. Precedido de Montaigne: o homem e a obra, de Pierre Moreau. 2. ed. Brasília, DF: Editora da UnB; São Paulo, SP: Hucitec, 1987.

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