Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 9 de março de 2023

Armando da Silva Carvalho - O Peso das Fronteiras

O sujeito lírico identifica-se com um “cão dentro de um túnel”, exposto às misérias da carnalidade e, por extensão, de sua própria mortalidade, dirigindo-se a um terceiro, plenipotenciário em relação aos aspectos que lhe são circunstantes, mesmo no que diz respeito à região lindeira onde “um país termina e logo nasce um outro”, num trâmite de vida que se confunde com as vicissitudes experimentadas ao longo de seu embate com as palavras.

 

São versos que se fixam na fronteira entre as condições de ser um humano ou um animal, pouco mais além de sermos possuidores de um poder de simbolismo pela linguagem, mediante a qual o falante pervaga num mar por onde “vai e vem” – como o fluxo das águas –, a “arder” sobre a terra nos recessos de suas mais sólitas provações.

 

J.A.R. – H.C.

 

Armando da Silva Carvalho

(1938-2017)

 

O Peso das Fronteiras

 

Aqui me tens. E o texto.

Partículas. Partes sensíveis, pequenas

vísceras onde se ocultam vermes;

urna poeira doce;

depois urna ferida.

 

Repara bem nas frases,

na lenta fusão das letras sob o estômago.

Feriste-me. E as sílabas de um mar

há tanto, tanto tempo desejado,

vais ouvi-las mais tarde

quando discutes Marx, ofendes os amigos

ou passeias de mão dada com os poderes do tédio.

 

Insisto apenas para que me descubras.

Mais ou menos absorto. Virado de costas

ou simplesmente lendo

sem fome as páginas do tempo.

Nunca pesei muito.

 

Aliás, repara, quando os textos explodem

e se notam no ar as mil paciências

sobre a paciência;

quando a solidão se escama

como um peixe dúbio,

tudo se torna leve, afinal, tenso, coeso,

e tu podes ouvir, uivando,

um cão banhado em lágrimas.

 

Esse sou eu. Um cão dentro do túnel.

Já de patas desfeitas. Mais frio. Ao frio.

Roubando, entre os antigos, ossos

roendo, entre os modernos, mitos.

 

Os poetas começam onde acaba isto.

Este penso infectado que me pões nos olhos.

Um país termina. Logo nasce um outro.

E o território és tu,

população, governo.

Amor administrado; viva pátria

dos cínicos.

 

Vamos: sacode as armas quietas

da mentira.

Alarga as fronteiras

com teu riso sinistro.

 

Eu, mar, ligadura dobrada

sobre o sol do amor,

ardo na terra. Vou e venho.

E, além do mais, sou isto.

 

Em: “O Peso das Fronteiras” (1972)

 

Marinheiro aguardando a chegada

 de algo desconhecido

(Angel Planells: pintor espanhol)

 

Referência:

 

CARVALHO, Armando da Silva. O peso das fronteiras. In: CASTRO, Mario Moraes (Selección y Traducción). Antología breve de la poesía portuguesa del siglo XX. Edición bilingüe: Portugués x Español. 1. ed. México, DF: Instituto Politécnico Nacional, ene. 1998. p. 332 y 334.

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