O sujeito lírico
identifica-se com um “cão dentro de um túnel”, exposto às misérias da carnalidade
e, por extensão, de sua própria mortalidade, dirigindo-se a um terceiro, plenipotenciário
em relação aos aspectos que lhe são circunstantes, mesmo no que diz respeito à
região lindeira onde “um país termina e logo nasce um outro”, num trâmite de
vida que se confunde com as vicissitudes experimentadas ao longo de seu embate com
as palavras.
São versos que se fixam
na fronteira entre as condições de ser um humano ou um animal, pouco mais além
de sermos possuidores de um poder de simbolismo pela linguagem, mediante a qual
o falante pervaga num mar por onde “vai e vem” – como o fluxo das águas –, a “arder”
sobre a terra nos recessos de suas mais sólitas provações.
J.A.R. – H.C.
Armando da Silva
Carvalho
(1938-2017)
O Peso das Fronteiras
Aqui me tens. E o
texto.
Partículas. Partes
sensíveis, pequenas
vísceras onde se ocultam
vermes;
urna poeira doce;
depois urna ferida.
Repara bem nas frases,
na lenta fusão das
letras sob o estômago.
Feriste-me. E as
sílabas de um mar
há tanto, tanto tempo
desejado,
vais ouvi-las mais
tarde
quando discutes Marx,
ofendes os amigos
ou passeias de mão
dada com os poderes do tédio.
Insisto apenas para
que me descubras.
Mais ou menos
absorto. Virado de costas
ou simplesmente lendo
sem fome as páginas
do tempo.
Nunca pesei muito.
Aliás, repara, quando
os textos explodem
e se notam no ar as
mil paciências
sobre a paciência;
quando a solidão se
escama
como um peixe dúbio,
tudo se torna leve,
afinal, tenso, coeso,
e tu podes ouvir,
uivando,
um cão banhado em
lágrimas.
Esse sou eu. Um cão
dentro do túnel.
Já de patas desfeitas.
Mais frio. Ao frio.
Roubando, entre os
antigos, ossos
roendo, entre os
modernos, mitos.
Os poetas começam
onde acaba isto.
Este penso infectado
que me pões nos olhos.
Um país termina. Logo
nasce um outro.
E o território és tu,
população, governo.
Amor administrado;
viva pátria
dos cínicos.
Vamos: sacode as
armas quietas
da mentira.
Alarga as fronteiras
com teu riso
sinistro.
Eu, mar, ligadura
dobrada
sobre o sol do amor,
ardo na terra. Vou e
venho.
E, além do mais, sou
isto.
Em: “O Peso das Fronteiras”
(1972)
Marinheiro aguardando
a chegada
de algo desconhecido
(Angel Planells:
pintor espanhol)
Referência:
CARVALHO, Armando da
Silva. O peso das fronteiras. In: CASTRO, Mario Moraes (Selección y Traducción).
Antología breve de la poesía portuguesa del siglo XX. Edición bilingüe:
Portugués x Español. 1. ed. México, DF: Instituto Politécnico Nacional, ene.
1998. p. 332 y 334.
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