Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 12 de março de 2023

Eduarda Chiote - Da Razão e do Real

Se Platão aponta para cima, Aristóteles o faz para baixo. E é nessa direção que vão as especulações da poetisa, direcionadas a um interlocutor denominado Fernando, de início em relação a Deus – um “ótimo relojoeiro”, mas um “mau poeta” –, logo irrogado ao transcorrer do tempo, em linha com o que nos surpreende neste plano real de efemeridades.

 

No entanto, “o todo permanece” em meio à corrente de seu fluido seminal, rolando numa alternância de dias e de noites a suscitar o frágil equilíbrio que “fecunda a usura do momento”. Como se estivesse dirigindo a si própria, a voz poética, então, recomenda que não se ponha o poeta a “pensar” (presumivelmente sobre coisas que não se convalidem por meio de nossas experiências neste mundo de tangibilidades).

 

J.A.R. – H.C.


Eduarda Chiote

(n. 1930)

 

Da Razão e do Real

 

Deixemo-nos de discussões metafísicas.

Li que Deus era um óptimo relojoeiro, Fernando, e um mau poeta.

Será, acaso, Deus,

o tempo?

Olho o do bilhete de identidade.

Não rejeito os astros

nem os pequenos números

que raramente vão além de uma centena de vida.

Que dizem?

Estarmos vivos? Tenho as minhas dúvidas; frutuosas,

às vezes. Sobretudo quando a voz inesperada do que resta do nós

nos surpreende,

assim mudando o medo

em encantamento.

Que fragilidade exprime o que consome e gera o equilíbrio

que precisa quebrar-se

para restabelecer a perpétua alternativa entre a noite e o dia,

o nada que fecunda a usura do

momento?

Não há fronteira: “tout change, tout passe,

il n’y a que le tout

qui reste.” (*)

Dá-me o tudo que reste do momento.

Não penses

Poeta, não penses.

 

O sono da razão

(George Grie: artista russo-canadense)

 

Nota:

 

(*). “Tudo muda, tudo passa, só o todo permanece”, decerto um fragmento extraído ao colóquio “O Sonho de d’Alembert” (1769), de Denis Diderot.

 

Referência:

 

CHIOTE, Eduarda. Da razão e do real. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1588.

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