Se Platão aponta para
cima, Aristóteles o faz para baixo. E é nessa direção que vão as especulações
da poetisa, direcionadas a um interlocutor denominado Fernando, de início em
relação a Deus – um “ótimo relojoeiro”, mas um “mau poeta” –, logo irrogado ao
transcorrer do tempo, em linha com o que nos surpreende neste plano real de
efemeridades.
No entanto, “o todo
permanece” em meio à corrente de seu fluido seminal, rolando numa alternância de
dias e de noites a suscitar o frágil equilíbrio que “fecunda a usura do momento”.
Como se estivesse dirigindo a si própria, a voz poética, então, recomenda que
não se ponha o poeta a “pensar” (presumivelmente sobre coisas que não se
convalidem por meio de nossas experiências neste mundo de tangibilidades).
J.A.R. – H.C.
Eduarda Chiote
(n. 1930)
Da Razão e do Real
Deixemo-nos de
discussões metafísicas.
Li que Deus era um
óptimo relojoeiro, Fernando, e um mau poeta.
Será, acaso, Deus,
o tempo?
Olho o do bilhete de
identidade.
Não rejeito os astros
nem os pequenos
números
que raramente vão
além de uma centena de vida.
Que dizem?
Estarmos vivos? Tenho
as minhas dúvidas; frutuosas,
às vezes. Sobretudo
quando a voz inesperada do que resta do nós
nos surpreende,
assim mudando o medo
em encantamento.
Que fragilidade
exprime o que consome e gera o equilíbrio
que precisa
quebrar-se
para restabelecer a
perpétua alternativa entre a noite e o dia,
o nada que fecunda a
usura do
momento?
Não há fronteira: “tout
change, tout passe,
il n’y a que le tout
qui reste.” (*)
Dá-me o tudo que reste
do momento.
Não penses
Poeta, não penses.
O sono da razão
(George Grie: artista
russo-canadense)
Nota:
(*). “Tudo muda, tudo
passa, só o todo permanece”, decerto um fragmento extraído ao colóquio “O Sonho
de d’Alembert” (1769), de Denis Diderot.
Referência:
CHIOTE, Eduarda. Da
razão e do real. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização,
introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa
do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT:
Porto Editora, 2009. p. 1588.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário