Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 31 de março de 2023

Marcel Proust - Chopin

As palavras de Proust, neste poema, detêm-se em retratar alguns contornos da personalidade do compositor polonês, além de externar alusões a fatos de sua vida e à sua saúde precária, tudo muito bem bafejado pela forma como a música de Chopin teria, presumivelmente, suscitado sentimentos no ânimo do escritor francês, os quais, de resto, perpassam largamente as suas obras literárias.

 

Evoca-se, numa atmosfera com nuances simbolistas, o Chopin dos noturnos – “camarada da lua e das águas pálidas e suaves”, “mar de suspiros, de lágrimas, de soluços”: com efeito, avançam as linhas pejadas de elementos binários – dor e olvido, sorriso e lágrima, tristeza e alegria –, arrastando consigo muito do que se poderia dizer da natureza nobre e enfermiça do grande pianista.

 

J.A.R. – H.C.

 

Marcel Proust

(1871-1922)

 

Chopin

 

Chopin, mer de soupirs, de larmes, de sanglots

Qu’un vol de papillons sans se poser traverse

Jouant sur la tristesse ou dansant sur les flots.

Rêve, aime, souffre, crie, apaise, charme ou berce,

Toujours tu fais courir entre chaque douleur

L’oubli vertigineux et doux de ton caprice

Comme les papillons volent de fleur en fleur;

De ton chagrin alors ta joie est la complice:

L’ardeur du tourbillon accroît la soif des pleurs.

De la lune et des eaux pâle et doux camarade,

Prince du désespoir ou grand seigneur trahi,

Tu t’exaltes encor, plus beau d’être pâli,

Du soleil inondant ta chambre de malade

Qui pleure à lui sourire et souffre de le voir...

Sourire du regret et larmes de l’Espoir!

 

Fryderyk F. Chopin

(1810-1849)

 

Chopin

 

Chopin, mar de suspiros, lágrimas, soluços

Que um voo de borboletas cruza sem pousar

Brincando com a tristeza ou dançando sobre as ondas.

Ama, sonha, sofre, grita, acalma, encanta ou embala,

Fazes sempre escorrer entre cada dor

O olvido vertiginoso e doce do teu capricho

Como as borboletas voam de flor em flor;

E então de tua mágoa é cúmplice a alegria:

O ardor do turbilhão aumenta a sede de prantos.

Pálido, suave companheiro da lua e das águas,

Príncipe do desespero ou fidalgo traído,

Tu te exaltas ainda, mais belo em seres pálido,

Com o sol que inunda o teu quarto de doente

Que lhe chora a sorrir e sofre de o ver

Sorrir de pena e das lágrimas da Esperança!

 

Nota:

 

(*). O tradutor Fernando Py, apresenta a nota de rodapé no introito à seção “Retratos de pintores e músicos” da obra em referência: “Os poemas que se seguem são cuidadosamente rimados e metrificados no original. Todavia, pareceu-me preferível dispor os versos dando realce ao ritmo, que é bastante musical, sem me prender, ao traduzi-los, à métrica e à rima”.

 

Referências:

 

Em Francês:

 

PROUST, Marcel. Chopin. In: __________. Les plaisirs et les jours. Illustrations de Madeleine Lemaire. Préface d’Anatole France. Paris, FR: Calmann Lévy Éditeur, 1896. p. 135. Disponível neste endereço. Acesso em 24 fev. 2023.

 

Em Português:

 

PROUST, Marcel. Chopin. Tradução de Fernando Py. In: __________. Os prazeres e os dias. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro, RJ: Editora Rio Gráfica, 1986. p. 119-120. (Coleção ‘Grandes Sucessos da Literatura Internacional’; v. 13)

quinta-feira, 30 de março de 2023

Manuel Alegre - Fernando Pessoa

O escritor e político português alude nestes versos à ampla incursão pelo universo interior, levada a efeito pelos heterônimos do poeta conterrâneo Fernando Pessoa: Pessoa, sozinho, como diz Alegre, é toda uma literatura, dada a numerosidade dos poemas que saíram de sua pena, a fértil imaginação, o verbalizar com sutileza os seus pensamentos e intuições – e até mesmo aquilo que, no revolver do olhar, se mostra contraintuitivo.

 

Essa viagem íntima, aflorando em imagens variegadas, configura uma espécie de aventura – a de “escreviver” –, em contraste às peripécias pelo oceano adentro, que séculos antes os portugueses empreenderam por um globo terrestre em parte ainda incógnito, objeto de loas imortais nos cantos da epopeia lusitana de Camões.

 

Nessa ordem de coisas, pode-se bem compreender a derradeira linha do soneto: Pessoa, o “futuro do passado”, expressão entre aspas porque arrebatada a um verso do próprio poeta.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manuel Alegre

(n. 1936)

 

Fernando Pessoa

 

Vem ver agora o meu país que já

não tem Camões nem índias para achar

só tem Pessoa e o império que não há

sentado à mesa como em alto mar.

 

A viagem que faz é só por dentro

e escreviver-se a única aventura.

No pensamento é que lhe dá o vento

ele é sozinho uma literatura.

 

Eis a vida vidinha cega e surda

ditadura do não do só do pouco.

Ser homem (diz Pessoa) é ser-se louco.

 

Heterónimo de si na hora absurda

viajando no sentir escreve sentado.

E é Pessoa: “futuro do passado”.

 

Fernando Pessoa

(1888-1935)

 

Referência:

 

ALEGRE, Manuel. Fernando Pessoa. In: __________. Sonetos do obscuro quê. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 1993. p. 33.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Eugenio Montejo - Hamlet Ato Primeiro

O poeta venezuelano sintetiza em versos próprios o que se passa no primeiro ato da peça “Hamlet”, de Shakespeare, em meio aos anúncios dos divulgadores do evento: noites friorentas na Dinamarca, a ronda dos soldados, um rei morto e a sua capa – agora sem corpo a abrigar –, e o correspondente espectro a tornar tudo mais sinistro.

 

Montejo se reporta à atmosfera tensa e aterradora do começo da peça, sob a qual ocorre o diálogo irrequieto dos guardas, em concorrência com os sibilinos elementos de comicidade do episódio envolvendo os coveiros, tudo isso a convergir, harmoniosamente, com os fios condutores trágicos do relato, pois que, indiscutivelmente, a morte é a seta que traspassa toda a trama.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eugenio Montejo

(1938-2008)

 

Hamlet Acto Primero

 

Mira la sala: no es el cortinado

lo que tiembla. Ni la sombra de Hamlet.

Tal vez, tal vez la capa de su padre.

Todas las noches son de Dinamarca.

 

Los soldados se turnan en la ronda

y lían sus cigarros.

Vuelve tan crudo allí el invierno

que desdibuja en bultos blancos

la tenue imagen del televisor.

Pero la noche tiembla

y las túmidas narices del caballo

nos olfatean bajo la nieve...

 

¿Qué país no ha escondido algún rey muerto?

Pasan las propagandas

y retornan los pasos del espectro.

 

Es él, es él, es su fantasma

y la venganza de esa capa sola

estremece los clavos del perchero.

El locutor anuncia outra nevada

para mañana, pero roja, siniestra.

Todas las noches son de Dinamarca.

 

En: “Muerte y Memoria” (1972)

 

Hamlet e os coveiros

(Pascal Dagnan-Bouveret: pintor francês)

 

Hamlet Ato Primeiro

 

Olhe para a sala: não é o cortinado

o que tremula. Nem a sombra de Hamlet.

Talvez, talvez a capa de seu pai.

Todas as noites são de Dinamarca.

 

Os soldados se revezam na ronda

e enrolam os seus charutos.

Volta o inverno por lá, tão rigoroso

que desfoca em vultos brancos

a imagem esvaecida do televisor.

Mas a noite estremece

e as túmidas narinas do cavalo

nos farejam debaixo da neve...

 

Que país deixou de esconder algum rei morto?

Passam os anúncios

e retornam os passos do espectro.

 

É ele, é ele, é seu fantasma

e a vingança dessa capa sozinha

sacode as presilhas do cabide.

O locutor anuncia outra nevasca

para amanhã, mas vermelha, sinistra.

Todas as noites são de Dinamarca.

 

Em: “Morte e Memória” (1972)

 

Referência:

 

MONTEJO, Eugenio. Hamlet acto primero. In: __________. Alfabeto del mundo: antología poética. 1. ed. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1988. p. 54. (Colección ‘Tierra Firme’)

terça-feira, 28 de março de 2023

Pablo Neruda - A minhas obrigações

A título de prólogo a “Navegações e Regressos” (1959), Neruda tece versos sobre as suas obrigações quotidianas, a principal das quais escrever poemas capazes de “manifestar a primavera” – lida que resultou, em última instância, num prodigioso e esplêndido acervo, merecidamente agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1971.

 

O ofício torna-se um refúgio para o poeta chileno, uma forma de convolar infortúnios em esperanças, um engenho promotor de mudanças, uma dádiva oferecida com afeto ao seu público-alvo. Quase se poderia depreender um jogo de imersão catártica, de transmutação de sentimentos, de afirmação de um estado encorajante, em substituição a outro carregado de exasperações.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pablo Neruda

(1904-1973)

 

A mis obligaciones

 

Cumpliendo con mi oficio

piedra con piedra, pluma a pluma,

pasa el invierno y deja

sitios abandonados,

habitaciones muertas:

yo trabajo y trabajo,

debo substituir

tantos olvidos,

llenar de pan las tinieblas,

fundar otra vez la esperanza.

 

No es para mí sino el polvo,

la lluvia cruel de la estación,

no me reservo nada

sino todo el espacio

y allí trabajar, trabajar,

manifestar la primavera.

 

A todos tengo que dar algo

cada semana y cada día,

un regalo de color azul,

un pétalo frío del bosque,

y ya de mañana estoy vivo

mientras los otros se sumergen

en la pereza, en el amor,

yo estoy limpiando mi campana,

mi corazón, mis herramientas.

 

Tengo rocío para todos.

 

O Escritor

(Dan Beck: pintor norte-americano)

 

A minhas obrigações

 

Cumprindo o meu ofício

pedra com pedra, pena a pena,

passa o inverno e deixa

lugares abandonados,

moradas mortas:

eu trabalho e trabalho,

tenho de substituir

tantos esquecimentos,

encher de pão as trevas,

fundar outra vez a esperança.

 

Para mim nada mais que pó,

a chuva cruel da estação,

não me poupo nada

além do espaço todo

e aí trabalhar, trabalhar,

manifestar a primavera.

 

A todos tenho que dar algo

a cada semana e cada dia,

um presente de cor azul,

uma pétala fria do bosque,

e então de manhã estou vivo

enquanto os outros mergulham

na preguiça, no amor,

eu estou limpando minha redoma,

meu coração, minhas ferramentas.

 

Tenho orvalho para todos.

 

Referências:

 

Em Espanhol

 

NERUDA, Pablo. A mis obligaciones. In: __________. Fifty odes. Translated from Spanish by George Schade. Austin, TX: Host Publications, 1996. p. 16.

 

Em Português

 

NERUDA, Pablo. A minhas obrigações. Tradução de José Rubens Siqueira. In: __________. Navegações e regressos. Tradução de José Rubens Siqueira. 1. ed. São Paulo, SP: MEDIAfashion, 2012. p. 5-6. (Coleção Folha ‘Literatura Íbero-americana’; v. 9)