Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 26 de maio de 2022

María Negroni - O livro dos seres

O livro a que se reporta o título do poema seria o Alcorão, segundo o taxista que conduz a falante, o único livro que importa entre os muitos escritos, cantado sem música, mesmo sendo a música mais laboriosa e intraduzível jamais ouvida, como se fosse um processo agônico, dir-se-ia talvez melhor, conducente à morte.

 

Todos os outros roteiros seriam descaminhos, que não levam a qualquer porto seguro, distintamente ao destino certo a que são levados os que entoam as suras do livro sagrado: um lugar silencioso e insone, isto é, “uma cidade luminosa e vazia, sem portas nem alfabetos nem cemitérios”, “entre o amanhecer e a Turíngia”. Seria esse o lugar ambicionado pela falante?...

 

J.A.R. – H.C.

 

María Negroni

(n. 1951)

 

El libro de los seres

 

Como siempre, el taxista me lleva a un sitio donde

no quiero ir. Una vez me extravió en la calle Siria,

otra vez aparecí en Retiro a cuatro cuadras de mi

casa materna (cuando yo deseaba ir a la discoteca

Roxy, en Manhattan). Ahora acaba de anunciarme

que me dejará en Tetrópolis. Pero esta vez no

protesto. Apenas me pongo un poco triste, sin saber

que hubiera sido lo mismo si me hubiese llevado al

lugar que yo quería (de existir ese lugar,

pongamos). En la radio se oye una música extraña,

cortésmente le pregunto qué es. El taxista parece

ofendido:

– Esto no es música, están recitando el Qurán.

Me deja en una ciudad luminosa y vacía, sin puertas

ni alfabetos ni cementerios. Una ciudad de silencio,

insomne, entre el amanecer y Turingia.

– Ha de saber – dice el taxista – que el único libro

que cuenta ya ha sido escrito y se canta sin música y

es la música más laboriosa e intraducible que exista,

como una agonía.

 

Sem título

(Jonathan Wolstenholme: artista inglês)

 

O livro dos seres

 

Como sempre, o taxista leva-me a um local aonde

não quero ir. Uma vez desencaminhou-me na Rua Síria,

outra vez apareci em Retiro, a quatro quadras da casa

de minha mãe (quando desejava ir à Discoteca

Roxy, em Manhattan). Agora acaba de anunciar-me

que me deixará em Tetrópolis. Mas desta vez não

protesto. Só fico um pouco triste, sem saber

se teria sido o mesmo, caso me houvesse levado ao

lugar que eu queria (se existisse tal lugar,

digamos). Ouve-se uma música estranha vinda do

rádio e pergunto-lhe cortesmente o que é. O taxista parece

ofendido:

– Isto não é música, estão recitando o Alcorão.

Deixa-me numa cidade luminosa e vazia, sem portas

nem alfabetos nem cemitérios. Uma cidade de silêncio,

insone, entre o amanhecer e a Turíngia. (*)

– Deverias saber – diz o taxista – que o único livro

que importa já foi escrito e é cantado sem música e

é a música mais laboriosa e intraduzível jamais existente,

como uma agonia.

 

Nota:

 

(*). A Turíngia é um Estado da Alemanha, no centro do país, onde nasceram figuras ilustres da história germânica, como Lutero, Bach e Goethe. É na Turíngia que se localiza a cidade de Weimar, famosa por sua “República”, que vigorou entre 1919 e 1933. Nesse sentido, como há indefinição, no domínio topológico, para a expressão “entre o amanhecer e a Turíngia”, presume-se que a poetisa atribua ao Estado certo valor simbólico, a exemplo de um “paraíso idílico” (ou seria melhor adjetivá-lo por “edênico”?!), tanto mais porque se trata de uma região reconhecida como o “centro verde da Alemanha”.

 

Referência:

 

NEGRONI, María. El libro de los seres. In: __________. Night journey. A bilingual edition: Spanish x English. Translated by Anne Twitty. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2002. p. 111.

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