O livro a que se reporta
o título do poema seria o Alcorão, segundo o taxista que conduz a falante, o único
livro que importa entre os muitos escritos, cantado sem música, mesmo sendo a música
mais laboriosa e intraduzível jamais ouvida, como se fosse um processo agônico,
dir-se-ia talvez melhor, conducente à morte.
Todos os outros roteiros seriam descaminhos, que não levam a qualquer porto seguro, distintamente ao destino certo a que são levados os que entoam as suras do livro sagrado: um lugar silencioso e insone, isto é, “uma cidade luminosa e vazia, sem portas nem alfabetos nem cemitérios”, “entre o amanhecer e a Turíngia”. Seria esse o lugar ambicionado pela falante?...
J.A.R. – H.C.
María Negroni
(n. 1951)
El libro de los seres
Como siempre, el
taxista me lleva a un sitio donde
no quiero ir. Una vez
me extravió en la calle Siria,
otra vez aparecí en
Retiro a cuatro cuadras de mi
casa materna (cuando
yo deseaba ir a la discoteca
Roxy, en Manhattan).
Ahora acaba de anunciarme
que me dejará en
Tetrópolis. Pero esta vez no
protesto. Apenas me
pongo un poco triste, sin saber
que hubiera sido lo
mismo si me hubiese llevado al
lugar que yo quería
(de existir ese lugar,
pongamos). En la
radio se oye una música extraña,
cortésmente le
pregunto qué es. El taxista parece
ofendido:
– Esto no es música,
están recitando el Qurán.
Me deja en una ciudad luminosa y vacía, sin puertas
ni alfabetos ni cementerios. Una ciudad de
silencio,
insomne, entre el amanecer y Turingia.
– Ha de saber – dice
el taxista – que el único libro
que cuenta ya ha sido
escrito y se canta sin música y
es la música más
laboriosa e intraducible que exista,
como una agonía.
Sem título
(Jonathan
Wolstenholme: artista inglês)
O livro dos seres
Como sempre, o
taxista leva-me a um local aonde
não quero ir. Uma vez
desencaminhou-me na Rua Síria,
outra vez apareci em
Retiro, a quatro quadras da casa
de minha mãe (quando
desejava ir à Discoteca
Roxy, em Manhattan).
Agora acaba de anunciar-me
que me deixará em
Tetrópolis. Mas desta vez não
protesto. Só fico um
pouco triste, sem saber
se teria sido o mesmo,
caso me houvesse levado ao
lugar que eu queria (se
existisse tal lugar,
digamos). Ouve-se uma
música estranha vinda do
rádio e pergunto-lhe
cortesmente o que é. O taxista parece
ofendido:
– Isto não é música,
estão recitando o Alcorão.
Deixa-me numa cidade
luminosa e vazia, sem portas
nem alfabetos nem
cemitérios. Uma cidade de silêncio,
insone, entre o
amanhecer e a Turíngia. (*)
– Deverias saber –
diz o taxista – que o único livro
que importa já foi
escrito e é cantado sem música e
é a música mais
laboriosa e intraduzível jamais existente,
como uma agonia.
Nota:
(*). A Turíngia é um Estado
da Alemanha, no centro do país, onde nasceram figuras ilustres da história
germânica, como Lutero, Bach e Goethe. É na Turíngia que se localiza a cidade
de Weimar, famosa por sua “República”, que vigorou entre 1919 e 1933. Nesse
sentido, como há indefinição, no domínio topológico, para a expressão “entre o
amanhecer e a Turíngia”, presume-se que a poetisa atribua ao Estado certo valor
simbólico, a exemplo de um “paraíso idílico” (ou seria melhor adjetivá-lo por “edênico”?!),
tanto mais porque se trata de uma região reconhecida como o “centro verde da
Alemanha”.
Referência:
NEGRONI, María. El
libro de los seres. In: __________. Night journey. A bilingual edition:
Spanish x English. Translated by Anne Twitty. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 2002. p. 111.
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