Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 29 de maio de 2022

Cristina Peri Rossi - Inseparáveis

A voz lírica – atribuível a uma pessoa do sexo feminino – dirige-se a outra pessoa do sexo feminino – talvez sua companheira ou mesmo sua mãe –, dando-lhe conta da cisão operada na proximidade física e mental de ambas, uma espécie de separação promovida mediante cirurgia em pessoas siamesas ou mesmo através de uma excisão de ordem psicanalítica.

 

De duas criaturas integradas, mental e fisicamente, a outras duas voltando a experimentar o status ontológico da individualidade humana, a solitude à volta da própria companhia, a preservação da singularidade ainda que na presença de terceiros, sem demérito, é claro, aos vínculos afetivos e sociais. Afinal, lembremo-nos da máxima de Jobim: “Fundamental é mesmo o amor: é impossível ser feliz sozinho”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cristina Peri Rossi

(n. 1941)

 

Inseparables

 

Y hubo que separar

todo aquello que estuvo siamesamente

unido

 

la carne de la carne

los labios de los labios

los dedos de los dedos

el vientre del otro vientre.

 

Y hubo que separar

todo aquello que estuvo siamesamente

unido

 

el sueño del sueño

la epidermis de la epidermis

la cutícula de la uña

las pestañas de los párpados

el iris de la mácula.

 

La cirugía obra milagros

– también el psicoanálisis –.

 

Ahora volvíamos a ser solas

individuales

tu rostro no era ya mi rostro

tu despertar ya no era el mío

ni mi mirada era la tuya.

 

Devolví al mundo lo que había devorado

feto de mi entraña

comida de mi hambre

agua de mi sed

sangre de mis venas

célula de mi tejido

hija de tu vientre

alimento de tu plato

clítoris de tu sexo

epitelio de tus ojos.

 

Ahora ya somos dos.

 

La cirugía obra milagros

– también el psicoanálisis –.

 

Instaurada otra vez y para siempre la soledad.

 

Inseparáveis

(Pavel Eryzhenskii: artista russo-americano)

 

Inseparáveis

 

E foi preciso separar

tudo aquilo que esteve siamesamente

unido

 

a carne da carne

os lábios dos lábios

os dedos dos dedos

o ventre do outro vente.

 

E foi preciso separar

tudo aquilo que esteve siamesamente

unido

 

o sonho do sonho

a epiderme da epiderme

a cutícula da unha

os cílios das pálpebras

a íris da mácula da pupila.

 

A cirurgia opera milagres

– a psicanálise também –.

 

Agora voltávamos a ser sozinhas

individuais

teu rosto já não era meu rosto

teu despertar já não era o meu

nem teu o meu olhar.

 

Devolvi ao mundo o que havia devorado

feto de minhas entranhas

comida de minha fome

água de minha sede

sangue de minhas veias

célula de meu tecido

filha de teu ventre

alimento de teu prato

clitóris de teu sexo

epitélio de teus olhos.

 

Agora já somos duas.

 

A cirurgia opera milagres

– a psicanálise também –.

 

Restabeleceu-se – e para sempre – a solidão.

 

Referência:

 

ROSSI, Cristina Peri. Inseparables. In: __________. Estrategias del deseo. 1. ed. Barcelona, ES: Lumen (Random House Mondadori), oct. 2004. p. 85-86. (‘Poesía’; n. 151)

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