A voz lírica – atribuível
a uma pessoa do sexo feminino – dirige-se a outra pessoa do sexo feminino –
talvez sua companheira ou mesmo sua mãe –, dando-lhe conta da cisão operada na
proximidade física e mental de ambas, uma espécie de separação promovida mediante
cirurgia em pessoas siamesas ou mesmo através de uma excisão de ordem
psicanalítica.
De duas criaturas
integradas, mental e fisicamente, a outras duas voltando a experimentar o status
ontológico da individualidade humana, a solitude à volta da própria companhia,
a preservação da singularidade ainda que na presença de terceiros, sem demérito,
é claro, aos vínculos afetivos e sociais. Afinal, lembremo-nos da máxima de
Jobim: “Fundamental é mesmo o amor: é impossível ser feliz sozinho”.
J.A.R. – H.C.
Cristina Peri Rossi
(n. 1941)
Inseparables
Y hubo que separar
todo aquello que
estuvo siamesamente
unido
la carne de la carne
los labios de los
labios
los dedos de los
dedos
el vientre del otro
vientre.
Y hubo que separar
todo aquello que
estuvo siamesamente
unido
el sueño del sueño
la epidermis de la
epidermis
la cutícula de la uña
las pestañas de los
párpados
el iris de la mácula.
La cirugía obra
milagros
– también el
psicoanálisis –.
Ahora volvíamos a ser
solas
individuales
tu rostro no era ya
mi rostro
tu despertar ya no
era el mío
ni mi mirada era la
tuya.
Devolví al mundo lo
que había devorado
feto de mi entraña
comida de mi hambre
agua de mi sed
sangre de mis venas
célula de mi tejido
hija de tu vientre
alimento de tu plato
clítoris de tu sexo
epitelio de tus ojos.
Ahora ya somos dos.
La cirugía obra
milagros
– también el
psicoanálisis –.
Instaurada otra vez y
para siempre la soledad.
Inseparáveis
(Pavel Eryzhenskii: artista
russo-americano)
Inseparáveis
E foi preciso separar
tudo aquilo que esteve
siamesamente
unido
a carne da carne
os lábios dos lábios
os dedos dos dedos
o ventre do outro
vente.
E foi preciso separar
tudo aquilo que esteve
siamesamente
unido
o sonho do sonho
a epiderme da
epiderme
a cutícula da unha
os cílios das pálpebras
a íris da mácula da
pupila.
A cirurgia opera
milagres
– a psicanálise
também –.
Agora voltávamos a
ser sozinhas
individuais
teu rosto já não era
meu rosto
teu despertar já não
era o meu
nem teu o meu olhar.
Devolvi ao mundo o
que havia devorado
feto de minhas entranhas
comida de minha fome
água de minha sede
sangue de minhas
veias
célula de meu tecido
filha de teu ventre
alimento de teu prato
clitóris de teu sexo
epitélio de teus
olhos.
Agora já somos duas.
A cirurgia opera
milagres
– a psicanálise
também –.
Restabeleceu-se – e
para sempre – a solidão.
Referência:
ROSSI, Cristina Peri.
Inseparables. In: __________. Estrategias del deseo. 1. ed. Barcelona,
ES: Lumen (Random House Mondadori), oct. 2004. p. 85-86. (‘Poesía’; n. 151)
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